terça-feira, 23 de setembro de 2014

Liberalismo e Capitalismo


Liberalismo e Capitalismo

Antonio Delfim Netto

Publicado no Jornal Valor Econômico – 23/09/14 – p.A2

Um sentimento de crise permanente nos é transmitido desde o primeiro livro de história da civilização que enfrentamos. Toda a história do homem é exposta como a história dos problemas do homem.

Não se trata de uma narrativa dos problemas do homem com a natureza, da qual faz parte e da qual se distanciou pela capacidade de pensar-se e de pensá-la como entidade separada, mas dos problemas do homem com o homem. Ela é sempre a história do poder: da insuperável tendência permanente de alguns homens de sujeitarem os outros a sua vontade. São sempre minorias (ou maiorias) que tentam, pela persuasão ou pela força, quebrar a vontade de maiorias (ou minorias) e submetê-las à própria vontade.

O homem começou a viver da agricultura e a instalar-se em pequenas vilas há pouco mais de 10 mil anos. Tão logo suas necessidades vitais de sobrevivência física puderam ser razoavelmente atendidas sem a obediência às normas estabelecidas pelo mais forte, eles passaram a procurar mecanismos de administração de suas inter-relações.

Sistema não é o regime "ideal", mas parece melhor do que os outros

Mecanismos que fossem capazes de assegurar a coesão e a defesa contra as "vontades" exteriores ao grupo. Que, além disso, impedissem que a mínima hierarquia necessária a qualquer tipo de sociedade, para lhe dar um mínimo razoável de funcionalidade e estabilidade, fosse fonte de uso abusivo do poder por alguns. Ninguém os inventou: eles emergiram da prática da cooperação adaptativa natural que facilitava a vida do grupo.

Na longa caminhada em que o homem construiu-se a si mesmo, ele acabou entendendo que só existe um meio eficaz de controle do poder: a lei que não transcende ao homem, que não existe fora dele. Ela é produto de uma ética seletiva conveniente, aceita consensualmente para a comodidade e coesão do grupo. Nesse sentido, talvez seja a maior manifestação de humanidade do animal-homem, pois estabelece o desejo de igualdade onde a natureza estabeleceu a hierarquia. Estabelece o respeito onde a natureza estabeleceu a submissão. Estabelece a perpetuação onde a natureza estabeleceu a morte.

Ao abandonar a comodidade que a natureza lhe oferecia, com sua hierarquia natural, suas regras estritas de sobrevivência e seu processo de seleção, o homem escolheu um caminho difícil. Desgarrando-se da natureza, verificou que estava só, tendo que produzir suas próprias normas de comportamento, de acordo com sua própria conveniência e vontade.

É por isso que, tendo a partir do século XVI ocupado efetivamente todo o globo terrestre e apreendido da natureza uma noção de ordem inelutável, que deu nascimento às ciências físicas, os homens tiveram a esperança de que suas inter-relações fossem também comandadas por forças externas que garantiriam a harmonia dos seus interesses. Bastava-lhes, portanto, descobrir as "leis naturais" dessas inter-relações e obedecê-las para que tudo se acertasse.

Tratava-se de doce ilusão. Tendo abandonado a natureza, por que essa haveria de oferecer-lhe um caminho seguro? Em meados do século XIX, com Marx, o homem foi inexoravelmente forçado a enfrentar essa assustadora verdade. Entretanto, todas as tentativas de implementação de um empobrecedor marxismo-economicista acabaram por negá-lo: ou produziram sociedades onde o problema do poder é resolvido com a eliminação pura e simples do "outro", ou é resolvido por uma cópia do modelo que o processo de evolução impôs às formigas.

O homem compreendeu que resolver o problema do poder consiste em encontrar uma resultante adequada dos dois vetores de comportamento que o separaram do mundo puramente animal: a busca incessante da igualdade e da liberdade, como valores próprios da ética que construiu. Mas desde cedo apreendeu também que essa resultante é difícil de se encontrar, porque aqueles dois valores, depois de um certo limite, se destroem mutuamente.

Apesar de todas as dificuldades, o liberalismo político, que obteve sua certidão de nascimento com a Revolução Inglesa de 1688, deu margem à expansão das atividades econômicas apoiadas sobre a formação de uma burguesia extremamente ativa e razoavelmente independente do Estado. Até agora foi a única organização social capaz de compor de forma razoável e estável aqueles dois vetores.

A combinação do liberalismo político com o capitalismo não é o fim da história. É um sistema que continua em evolução empurrado pelo sufrágio universal. Certamente, não é o regime "ideal", mas parece melhor do que todos os outros. O seu funcionamento na Europa Ocidental, na Escandinávia e nos Estados Unidos mostrou que possui uma capacidade quase infinita de continuar a adaptar-se na busca da sociedade civilizada, que é o objetivo do homem.

A evolução social e econômica daqueles países mostra claramente que o liberalismo político é incomparavelmente superior a todos os "inventados" por cérebros peregrinos, e que o que se tem qualificado de socialismo (quando não se refere ao "socialismo" daqueles mesmos países) não tem sido mais do que um capitalismo de Estado, administrado por burocracias extremamente ineficientes e, em geral, tão corruptas quanto a burguesia. Infelizmente, a história mostra que a verdade é sempre descoberta tarde demais...



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