A justificativa ética
do capitalismo e por que o socialismo é moralmente indefensável
Hans-Hermann Hoppe*
(Este
artigo é o capítulo 7 do livro Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo)
Da
mesma forma que existem pessoas que acreditam que a riqueza econômica e os
padrões de vida são os critérios mais importantes na hora de avaliar uma
sociedade — e não pode haver dúvidas de que, para muitos, o padrão de vida é
uma questão da mais alta importância —, há também pessoas que não dão muita
importância à riqueza econômica e que qualificam outros valores como mais
elevados.
Tal
postura é perfeita para o socialismo, pois desta forma ele pode silenciosamente
esquecer a sua reivindicação original de ser capaz de trazer mais prosperidade
à humanidade e, em vez disso, recorrer à afirmação completamente diferente, mas
ainda assim mais inspiradora, de que embora o socialismo possa não ser a chave
para a prosperidade, ele significaria justiça, equidade e moralidade (todos
termos usados aqui como sinônimos). E
ainda pode argumentar que uma compensação entre eficiência e justiça, uma troca
de "menos riqueza" por "mais justiça", é justificada, uma
vez que justiça e equidade são fundamentalmente mais valiosas do que riqueza
econômica.
Essa
alegação será estudada detalhadamente neste artigo. E ao fazê-lo, serão analisadas duas
afirmações separadas, mas correlacionadas: (1) a afirmação feita
particularmente por socialistas marxistas e social-democratas, e, em menor
grau, pelos conservadores socialistas, de que é possível formular um argumento
a favor do socialismo baseado em princípios por causa do valor moral de seus
princípios e, mutatis mutandis, que o capitalismo não pode ser moralmente
defendido; e (2) a afirmação do socialismo empírico de que as afirmações
normativas ("deveria" ou "tem que") — uma vez que não se
relacionam unicamente aos fatos, nem simplesmente declaram uma definição
verbal, e, portanto, não são afirmações analíticas nem empíricas — não são
realmente afirmações, pelo menos não afirmações que possam ser chamadas de
"cognitivas" num sentido mais amplo, mas meras "expressões
verbais" usadas para expressar ou despertar sentimentos (tais como
"Opa!" ou "Rrrrrr").
A
segunda afirmação, a empírica, ou pretensão "emotivista", como é
chamada a sua posição aplicada ao campo da moral, será tratada em primeiro
lugar, dada a sua maior abrangência. A
posição emotivista é derivada da aceitação da afirmação central
empírica-positivista de que a distinção dicotômica entre as afirmações empírica
e analítica é de natureza totalmente inclusiva; isto é, qualquer afirmação,
seja ela qual for, deve ser empírica ou analítica, nunca podendo ser ambas ao
mesmo tempo. Essa posição, como veremos,
acaba por ser auto-destrutiva se fizermos uma análise mais minuciosa, assim
como o empirismo em geral acaba por ser auto-destrutivo.
Se
o emotivismo é uma posição válida, então, a sua proposição básica sobre as
afirmações normativas deve, por si só, ser analítica ou empírica, ou então deve
ser uma expressão das emoções. Se for tida como analítica, será, então, um mero
subterfúgio verbal, sem nada a dizer sobre qualquer coisa real, apenas
definindo um som por outro, e o emotivismo seria, dessa forma, uma doutrina
vazia. Se, em vez disso, for tida como empírica, a doutrina não teria qualquer
peso à medida que sua proposição central poderia muito bem estar errada. Em todo o caso, certa ou errada, seria apenas
uma proposição demonstrando um fato histórico, ou seja, como certas expressões
foram usadas no passado, o que por si só não fornece qualquer razão pela qual
seria este também o caso no futuro e, portanto, por que se deveria ou não
procurar afirmações normativas que são mais do que expressões de emoções que se
pretendem justificáveis.
E
a doutrina emotivista também perderia todo o seu peso se a terceira alternativa
fosse adotada e se uma afirmação do tipo "uau!" fosse declarada como
seu princípio central. Pois, se este fosse o caso, não haveria então qualquer
razão pela qual se deveria relacionar e interpretar de certa forma determinadas
afirmações e, portanto, se os próprios instintos e sentimentos de uma pessoa
não coincidissem com o "oba!" de outra, não haveria nada que pudesse
impedi-la de seguir os seus próprios sentimentos. Assim como uma afirmação normativa não seria
mais do que o ladrar de um cão, a posição emotivista não seria mais do que
comentar latindo sobre o ato de ladrar.
Por
outro lado, se a afirmação central do empirismo-emotivismo, ou seja, a de que
as afirmações normativas não têm significado cognitivo, mas são simples
expressões de sentimentos, for por si só considerada uma afirmação significativa
para transmitir que se deveria pensar em todas as afirmações que não são
analíticas ou empíricas como meros símbolos de expressão, a posição emotivista
então se torna completamente contraditória.
Assim, essa posição deve considerar, pelo menos implicitamente, que
determinadas ideias, ou seja, as relativas às afirmações normativas, não podem
ser simplesmente compreendidas e dotadas de significados, mas podem ser
justificativas dadas enquanto afirmações com significados específicos.
Consequentemente,
deve-se concluir que o emotivismo titubeia, porque se fosse verdade, não se
poderia, então, nem mesmo dizer e atribuir significado ao que se diz —
simplesmente não existiria como uma posição que pudesse ser discutida e
avaliada no que tange à sua validade. Mas se for uma posição significativa que
possa ser discutida, este fato então desmente a sua própria premissa básica.
Além disso, deve-se observar que o fato de que esta é realmente uma posição
significativa não pode nem mesmo ser refutado, como não se pode comunicar e
argumentar que não se pode comunicar e argumentar.
No
entanto, isto deve ser pressuposto de qualquer posição intelectual, que é
dotada de significado e que pode ser debatida em relação ao seu valor
cognitivo, simplesmente porque é apresentada numa linguagem e comunicada.
Argumentar o contrário significaria admitir implicitamente a sua validade.
Somos obrigados, então, a aceitar a abordagem racionalista em relação à ética
pela mesma razão que se obrigou a adotar uma epistemologia racionalista em vez
de uma epistemologia empírica.
No
entanto, com o emotivismo sendo assim rejeitado, ainda estou muito longe, ou
assim parece, do meu objetivo definido, que eu divido com os socialistas
marxistas e conservadores, de demonstrar que pode ser formulado um argumento
baseado em princípios a favor ou contra o socialismo ou o capitalismo. O que
consegui até agora foi chegar à conclusão de que se as afirmações normativas
são ou não cognitivas isto é, por si só, um problema cognitivo. No entanto,
isto ainda parece ser muito diferente de provar que as propostas de normas
efetivas podem ser realmente expostas como sendo válidas ou inválidas.
Felizmente,
essa impressão está errada e já se conseguiu muito mais aqui do que se poderia
imaginar. O argumento anterior nos mostra que qualquer afirmação da verdade —
afirmação ligada a qualquer proposição que seja verdadeira, objetiva ou válida
(todos termos usados aqui como sinônimos) — é e deve ser feita e resolvida no
curso de uma argumentação. E uma vez que não se pode refutar que isto é assim
(não se pode comunicar e argumentar que não se pode comunicar e argumentar) e
se deve considerar que todo mundo sabe o que significa alegar que algo é
verdadeiro (não se pode negar esta afirmação sem afirmar sua negação como sendo
verdadeira), tal estrutura foi sagazmente chamada de o "a priori da
comunicação e da argumentação".[1]
Agora,
argumentar nunca se baseia apenas em proposições flutuando livremente que
alegam ser verdadeiras. Antes, também a argumentação é sempre uma atividade.
Mas considerando que as alegações de verdade são levantadas e decididas numa
argumentação e que a argumentação, além de tudo o que é dito durante o seu
desenvolvimento, é um assunto prático, deduz-se que as normas
intersubjetivamente significativas que devem existir — especificamente aquelas
que realizam alguma ação numa argumentação — tem um status cognitivo especial
em que elas são pré-condições práticas de objetividade e verdade.
Portanto,
chegamos à conclusão de que as normas devem realmente ser consideradas
justificáveis enquanto válidas. É simplesmente impossível argumentar o
contrário porque a capacidade para argumentar, de fato, pressupõe a validade
daquelas normas que constituem a base de qualquer argumentação.[2]
Portanto,
a resposta à questão de quais fins podem ou não ser justificados é deduzida do
conceito de argumentação. E, com isso, o papel peculiar da razão em determinar
o conteúdo da ética também recebe uma descrição precisa. Em contraste com o
papel da razão em estabelecer leis empíricas da natureza, a razão pode alegar
produzir resultados na determinação de leis morais, que podem ser mostradas
como sendo válidas a priori. Isto só torna explícito o que já está implícito no
conceito de argumentação; e ao analisar qualquer proposta de norma efetiva, sua
tarefa está confinada a analisar se é ou não logicamente consistente com a
própria ética que o proponente deve pressupor como válida na medida em que ele
é capaz de fazer, sob qualquer condição, a sua proposta.[3]
Mas
o que é a ética implícita na argumentação cuja validade não pode ser refutada,
pois refutá-la exigiria implicitamente pressupô-la?
De
forma muito frequente tem sido observado que a argumentação significa uma
proposição que reivindica uma aceitabilidade universal, ou, se uma norma for
proposta, que seja "universalizável". Aplicada à propositura de
normas, esta é a ideia, como formulada na Regra de Ouro da ética ou no
Imperativo Categórico Kantiano, de que somente aquelas normas que podem ser
justificadas é que podem ser formuladas como princípios gerais que são válidos
para todos sem exceção.[4]
De
fato, como a argumentação implica que todos que possam entender um argumento
devem, em princípio, ser capazes de ser convencidos por ele devido à sua força
argumentativa, o princípio de universalização da ética pode agora ser entendido
e explicado como fundamentado na mais ampla "comunicação e argumentação a
priori". Porém, o princípio da universalização fornece apenas um critério
puramente formal para a moralidade. Na verdade, comparadas com esse critério,
pode se mostrar que todas as propostas de normas válidas que especificariam
regras diferentes para diferentes classes de pessoas não podem legitimamente
reivindicar serem universalmente aceitáveis como normas justas, a menos que a
distinção entre as diferentes classes de pessoas fosse de tal forma que não
implicasse em discriminação, mas que pudesse ser aceita novamente por todos
como fundada na natureza das coisas.
Mas
enquanto algumas normas podem não passar pelo teste da universalização, se for
dada atenção suficiente à sua formulação, as normas mais ridículas, e o que é
logicamente ainda mais relevante, até mesmo as normas abertamente incompatíveis
poderiam facilmente e igualmente passar no teste. Por exemplo, "todo mundo
tem que ficar bêbado aos domingos ou serão multados" ou "qualquer um
que beba álcool será punido" são ambas regras que não permitem discriminação
entre grupos de pessoas e, portanto, poderiam ambas alegar que satisfazem a
condição de universalização.
Claramente,
portanto, o princípio da universalização por si só não forneceria qualquer
conjunto positivo de normas que pudesse ser demonstrada como justificada. No
entanto, há outras normas positivas contidas na argumentação, além do princípio
da universalização. A fim de reconhecê-las, é necessário apenas chamar a
atenção para três fatos relacionados. Primeiro que a argumentação não é somente
uma questão cognitiva, mas também prática. Segundo, que a argumentação, como
uma forma de ação, inclui o uso do recurso escasso do corpo de alguém. E
terceiro, que a argumentação é uma forma de interação livre de conflito. Não no
sentido de que há sempre concordância sobre o que foi dito, mas no sentido de
que uma vez que a argumentação está em desenvolvimento é sempre possível
concordar pelo menos com o fato de que há uma discordância sobre a validade do
que foi dito. E dizer isto não é nada mais do que um reconhecimento mútuo de
que o controle exclusivo de cada pessoa sobre o seu próprio corpo deve estar
pressuposto enquanto houver argumentação (observe novamente que é impossível
negar este fato e afirmar que sua negação seja verdadeira sem ter que implicitamente
admitir a sua verdade).
Consequentemente,
teríamos que concluir que a norma contida na argumentação é que todo mundo tem
o direito de controle exclusivo sobre o seu próprio corpo como seu instrumento
de ação e cognição. Somente se houver pelo menos um reconhecimento implícito do
direito de cada indivíduo sobre a propriedade de seu próprio corpo é que pode
haver argumentação.[5] Apenas enquanto esse direito for reconhecido é possível
para alguém concordar com aquilo que foi dito num argumento e, consequentemente,
aquilo que foi dito pode ser validado, ou é possível dizer "não" e
concordar apenas com o fato de que há discordância.
Realmente,
qualquer um que tentasse justificar qualquer norma já teria que pressupor o
direito de propriedade de seu corpo como uma norma válida, simplesmente para
dizer "isto é o que eu afirmei como sendo verdadeiro e objetivo".
Qualquer pessoa que tentasse contestar o direito de propriedade sobre o seu
próprio corpo ficaria preso numa contradição, à medida que argumentar dessa
forma e reivindicar seu próprio argumento como sendo verdadeiro já seria
implicitamente aceitar essa norma como sendo válida.
Portanto,
pode-se afirmar que toda vez que uma pessoa alega que alguma afirmação pode ser
justificada ela considera, pelo menos implicitamente, a norma seguinte para ser
justificada: "Ninguém tem o direito de agredir o corpo de outra pessoa sem
permissão e dessa forma delimitar ou restringir o controle de outrem sobre o
seu próprio corpo". Esta regra está contida no conceito de justificação
enquanto justificação argumentativa. Justificar significa justificar sem ter
que depender de coerção. De fato, se é possível formular o contrário dessa
regra, ou seja, que "todo mundo tem o direito de agredir outra pessoa sem
permissão" (uma regra que, a propósito, passaria no teste formal do
princípio da universalização!), então é fácil ver que essa regra não é, e nunca
poderia ser, defendida numa argumentação. Fazê-lo exigiria pressupor exatamente
a validade do oposto disso, ou seja, o supracitado princípio da não-agressão.
Com
essa justificação da norma de propriedade em relação ao corpo de uma pessoa,
pode parecer que não se obteve muita coisa, enquanto os conflitos sobre os
corpos, para os quais o princípio da não-agressão formula uma solução
universalmente justificável de forma a tentar impedi-los, representam apenas
uma pequena parte de todos os conflitos possíveis. Porém, essa impressão não é
correta. Certamente, as pessoas não vivem apenas de ar e de amor. Elas também
precisam de um número maior ou menor de outras coisas, simplesmente para
sobreviver — e, obviamente, só aquele que sobrevive pode manter uma
argumentação, quiçá levar uma vida confortável. Com relação a todas as outras
coisas, as normas também são necessárias, uma vez que poderiam surgir
avaliações conflituosas acerca do seu uso.
Mas,
de fato, qualquer outra norma deve ser logicamente compatível com o princípio
da não-agressão para ser ela própria justificada e, mutatis mutandis, toda
norma que se mostrasse incompatível com esse princípio teria que ser
considerada inválida. Além do mais, enquanto as coisas com relação às quais as
normas têm que ser formuladas são bens escassos — assim como o corpo de alguém
é um bem escasso, e assim como só é necessário formular normas porque os bens
são escassos e não porque eles sejam tipos específicos de bens escassos —, as
especificações do princípio da não-agressão, concebido como norma especial da
propriedade que se refere a um tipo específico de bens, já devem conter aquelas
de uma teoria geral da propriedade.
Considerarei
primeiro essa teoria geral da propriedade como um conjunto de regras aplicáveis
a todos os bens com o propósito de ajudar a evitar todos os conflitos possíveis
por meio de princípios uniformes, e irei em seguida demonstrar como essa teoria
geral está contida no princípio da não-agressão. Uma vez que segundo o
princípio da não-agressão uma pessoa pode fazer com o seu corpo tudo aquilo que
quiser na medida em que, desse modo, ela não agrida o corpo de outra pessoa,
essa pessoa poderia usar outros meios escassos, assim como usar o seu próprio
corpo, desde que essas outras coisas já não tenham sido apropriadas por alguém
e continuem num estado natural sem dono.
Enquanto
os recursos escassos são visivelmente apropriados — tão logo alguém
"mistura o seu trabalho", para usar a frase de John Locke, com esses
recursos e há traços objetivos dessa ação — , a propriedade, ou seja, o direito
de controle exclusivo, só pode ser adquirida por uma transferência contratual
de títulos de propriedade de um proprietário anterior para o atual, e qualquer
tentativa de delimitar unilateralmente esse controle exclusivo de proprietários
anteriores ou qualquer transformação não solicitada das características físicas
dos meios escassos em questão é, numa analogia estrita com as agressões contra
os corpos de terceiros, uma ação injustificável.
A
compatibilidade desse princípio com o da não-agressão pode ser demonstrada por
meio de um argumentum a contrario. Em primeiro lugar, deveria ser observado que
se ninguém tiver o direito de adquirir e controlar nada, exceto o seu próprio
corpo (uma regra que passaria no teste formal do princípio da universalização),
nós deixaríamos então de existir e o problema da justificação das afirmações
normativas (ou, para essa questão, qualquer outro problema de interesse desta
obra) simplesmente não existiria. A existência desse problema só é possível
porque estamos vivos e a nossa existência deve-se ao fato de que não aceitamos,
e realmente não podemos aceitar, uma norma que proíba a propriedade de outros
bens escassos depois e além do corpo físico de alguém.
Consequentemente,
deve ser considerado como existente o direito de adquirir esses bens. Agora, se
for assim, e se não se tem o direito de adquirir esses direitos de controle
exclusivo sobre as coisas não usadas dadas pela natureza através de seu próprio
trabalho, ou seja, ao fazer algo com as coisas com as quais ninguém jamais
tinha feito nada antes, e se outras pessoas tivessem o direito de desconsiderar
a reivindicação de propriedade de alguém no que se refere a essas coisas com as
quais não tinha trabalhado ou que não as havia colocado anteriormente em algum
uso específico, isso só seria possível, então, se fosse possível adquirir
títulos de propriedade não mediante o trabalho, ou seja, pela definição de uma
ligação objetiva intersubjetivamente controlada entre uma determinada pessoa e
um recurso escasso específico, mas simplesmente por declaração verbal; por
decreto.[6]
No
entanto, adquirir títulos de propriedade através de declaração é incompatível
com o já justificado princípio da não-agressão em relação aos corpos. Por uma
razão, se fosse realmente possível adquirir a propriedade por decreto, isso
significaria que também seria possível para alguém simplesmente declarar o
corpo de outra pessoa como sendo de sua propriedade. Contudo, isso claramente
entraria em conflito com a regra do princípio da não-agressão que estabelece
uma nítida distinção entre o corpo de alguém e o corpo de outrem. E essa
distinção só pode ser feita de forma clara e sem ambiguidades porque para os
corpos, como para nenhum outro, a separação entre "meu" e
"seu" não é baseada em declarações verbais, mas na ação. (A
propósito, uma decisão entre reivindicações declaratórias rivais não pode ser
tomada, a menos que haja algum outro critério objetivo que não uma declaração).
A
separação é baseada na observação de que alguns recursos escassos específicos
foram, de fato, feitos como uma expressão ou materialização da vontade de
alguém ou, como pode ser o caso, da vontade de outrem. Além disso, e ainda mais
importante, dizer que a propriedade é adquirida não através da ação, mas
mediante uma declaração, envolve uma contradição prática, pois, desse modo,
ninguém poderia dizer e declarar, a menos que apesar do que foi realmente dito,
seu direito de controle exclusivo sobre o seu próprio corpo enquanto seu
próprio instrumento de dizer qualquer coisa já tivesse, de fato, sido
pressuposto.
Demonstramos
agora que o direito de apropriação original por meio de ações é compatível com,
e está incluído no, princípio da não-agressão como pressuposto logicamente
necessário da argumentação. Indiretamente, é claro, foi também demonstrado que
qualquer regra que especifique direitos diferentes, tal como uma teoria
socialista da propriedade, não pode ser justificada. Porém, antes de iniciar
uma análise mais detalhada de por que toda ética socialista ser indefensável —
uma discussão que deveria lançar algumas luzes adicionais sobre a importância
de algumas das condições da teoria capitalista da propriedade
"natural" —, devem ser feitas algumas observações sobre o que está ou
não implícito na classificação dessas últimas normas como justificáveis.
Ao
fazer essa afirmação, não é necessário alegar ter deduzido um "dever"
a partir de um "é". De fato, pode-se prontamente apoiar a visão
geralmente aceita de que o abismo entre "dever" e "é" é
logicamente intransponível. No entanto,
classificar dessa forma as regras da teoria natural da propriedade é uma
questão puramente cognitiva. Não mais resulta da classificação do princípio
fundamental do capitalismo como sendo "justo" ou "correto",
de acordo com o qual se deve agir e deduz-se o conceito de validade ou verdade
pelo qual se deve sempre lutar. Dizer que esse princípio é correto também não
exclui a possibilidade das pessoas proporem ou até mesmo de imporem regras que
são incompatíveis com ele. Na verdade, no que tange às normas, a situação é
muito semelhante ao de outras disciplinas de investigação científica.
O
fato de que, por exemplo, determinadas afirmações empíricas são justificadas ou
justificáveis e de que outras não são, não significa que todo mundo só defende
afirmações válidas objetivas. Em vez disso, as pessoas podem estar erradas, até
mesmo intencionalmente. Mas a distinção entre objetivo e subjetivo, entre
verdadeiro e falso, não perde nada de seu significado por causa disso. Mais
propriamente, as pessoas que estão erradas teriam que ser classificadas como
desinformadas ou intencionalmente mentirosas. O argumento é semelhante no que
se refere às normas. Obviamente, há muitas pessoas que não propagam ou impõem
normas que podem ser classificadas como válidas de acordo com o significado de
justificação que eu apresentei anteriormente. Mas a distinção entre normas
justificáveis e não-justificáveis não se desfaz por causa disso, assim como
aquela entre afirmações objetivas e subjetivas não se desintegram por causa da
existência de pessoas desinformadas ou mentirosas.
Em
vez disso, e consequentemente, aquelas pessoas que iriam propagar e impor essas
diferentes normas inválidas teriam de novo que ser classificadas como
desinformadas ou desonestas na medida em que havia sido explicado a elas e
realmente deixado claro que suas propostas de normas alternativas ou sanções
não poderiam e nunca seriam justificáveis numa argumentação. E haveria mais
justificativa por fazê-lo dessa forma no argumento moral do que no argumento
empírico, uma vez que a validade do princípio de não-agressão e o do princípio
da apropriação original mediante ação, como seu corolário logicamente
necessário, deve ser considerada por ser ainda mais básico do que quaisquer
tipos de afirmações válidas ou verdadeiras. Pois o que é válido e verdadeiro
tem que ser definido como aquilo em que todos agindo de acordo com esse princípio
talvez possam concordar. Na realidade, como já foi mostrado, pelo menos a
aceitação implícita dessas regras é o pré-requisito necessário para, de
qualquer modo, ser capaz de viver e argumentar.[7]
Por
qual razão, então, as teorias socialistas da propriedade de quaisquer tipos
falham em serem justificáveis como válidas? Em primeiro lugar, deve-se observar
que todas as versões realmente praticadas do socialismo e a maioria de seus
modelos propostos teoricamente também não passariam pelo primeiro teste formal
do princípio da universalização e, por este fato, fracassariam por si mesmas!
Todas essas versões contêm normas dentro de seu enquadramento de regras legais
que seguem a fórmula "algumas pessoas podem e algumas pessoas não
podem".
Porém,
essas regras que especificam direitos ou obrigações diferentes para classes
diferentes de pessoas não têm chance, por razões puramente formais, de serem
aceitas como justas por cada participante potencial de uma argumentação. A não
ser que a distinção feita entre classes diferentes de pessoas passe a ser
aquela que é aceitável por ambos os lados como fundamentada na natureza das
coisas, essas regras não seriam aceitáveis porque significariam que um grupo
seria recompensado por privilégios legais às custas de discriminações
complementares contra outro grupo.
Por
esse motivo, algumas pessoas, tanto aquelas que são autorizadas a fazer algo
quanto aquelas que não são, poderiam não concordar que essas regras fossem
justas. Uma vez que a maioria dos tipos
de socialismo, a exemplo dos praticados e defendidos, dependem da imposição de
regras tais como "algumas pessoas têm a obrigação de pagar impostos e
outras têm o direito de consumi-los", ou "algumas pessoas sabem o que
é bom para você e estão autorizadas a ajudá-lo a conseguir essas supostas
bênçãos, mesmo que você não as queira, mas você não está autorizado a saber o
que é bom para elas e, consequentemente, ajudá-las", ou "algumas
pessoas têm o direito de determinar quem tem muito de algo e quem tem pouco, e
outros têm a obrigação de obedecer", ou, de forma ainda mais clara,
"a indústria de computadores deve pagar para subsidiar os
fazendeiros", "aqueles que têm filhos devem subsidiar os que não
têm" etc., ou vice-versa, todas essas regras podem ser facilmente
descartadas quanto a serem sérias candidatas à alegação de integrarem uma
teoria de normas válidas na qualidade de normas de propriedade, porque todas
elas indicam, pela sua própria formulação, que não são universalizáveis.
Mas
o que está errado com as teorias socialistas da propriedade quando se trata de,
e realmente existe, uma teoria formulada que contenha normas exclusivamente
universalizáveis do tipo "ninguém está autorizado a" ou "todo
mundo pode"? O que foi demonstrado
indiretamente nos parágrafos anteriores e que deve ser argumentado diretamente
é que o socialismo nunca poderia provar a sua validade, não mais por razões
formais, mas por causa de suas especificações materiais. De fato, enquanto as
formas de socialismo, que podem ser facilmente refutadas em relação à sua
pretensão de validade moral sobre fundamentos formais simples, poderiam, pelo
menos, ser praticadas, a aplicação daquelas versões mais sofisticadas que
passassem no teste de universalização, por razões materiais, provariam ser
fatais: mesmo se tentássemos, elas nunca poderiam ser colocadas em prática.
Das
duas especificações relacionadas às normas da teoria natural da propriedade, há
pelos menos uma que entraria em conflito com a teoria socialista da
propriedade. A primeira especificação é a que, segundo a ética capitalista,
define agressão como uma invasão da integridade física da propriedade de outra
pessoa. O socialismo, por sua vez,
definiria agressão como uma invasão do valor ou da integridade física da propriedade
de outrem. O socialismo conservador, devemos relembrar, visava preservar uma
dada distribuição de riqueza e de valores, e tentou conduzir aquelas forças que
poderiam modificar o status quo sob controle por meio do controle de preços,
regulações e controles de comportamento.
Claramente,
a fim de fazê-lo desse modo, os direitos de propriedade em relação ao valor das
coisas deve ser considerado como justificável e uma invasão de valores, mutatis
mutandis, deve ser classificada como uma agressão injustificável. Mas não só o
conservadorismo utiliza essa ideia da propriedade e da agressão. O socialismo
social-democrata também o faz. Os direitos de propriedade em relação aos
valores devem ser considerados como legítimos quando o socialismo
social-democrata me permite, por exemplo, exigir uma compensação das pessoas
cujas chances ou oportunidades afetam negativamente as minhas. E o mesmo é
verdadeiro quando uma compensação por se cometer "violência
estrutural" ou psicológica — um termo particularmente caro à literatura da
ciência política esquerdista — é permitida.[8]
Para
estar habilitado a solicitar essas compensações, aquilo que foi feito — e que
afetou as minhas oportunidades, minha integridade física, meus sentimentos em
relação ao que possuo — teria que ser classificado como um ato agressivo.
Por
que é injustificável essa ideia de proteger o valor da propriedade? Em primeiro lugar, enquanto cada pessoa pode,
pelo menos em princípio, ter o controle total sobre as mudanças que suas ações
provocam ou não nas características físicas de algo e, consequentemente, também
pode ter o controle total sobre se aquelas ações são ou não justificáveis, o
controle sobre se as ações de terceiros afetam o valor da propriedade de outrem
não fica com a pessoa que age, mas com as outras pessoas e suas avaliações
subjetivas. Assim, ninguém poderia
determinar ex ante se as suas ações seriam classificadas como justificáveis ou
injustificáveis. Teria que, primeiro, interrogar toda a população para ter
certeza de que as ações planejadas por alguém não modificariam as avaliações de
outrem em relação à sua própria propriedade. E mesmo assim ninguém poderia agir
até que fosse obtida uma concordância universal sobre quem supostamente faria o
que e com o que, e quando. Claramente,
diante de todos os problemas práticos envolvidos, já se estaria morto há muito
tempo e ninguém argumentaria mais nada antes que isso tudo estivesse resolvido.
Mas
ainda mais decisivo do que isso, a posição socialista sobre a propriedade e a
agressão não poderia nem mesmo ser efetivamente argumentada, pois argumentar a
favor de qualquer norma, socialista ou não, significa que há um conflito sobre
o uso de alguns meios escassos, caso contrário, simplesmente não haveria
necessidade de discussão. Porém, a fim de argumentar que existe uma saída para
esses conflitos, deve-se pressupor que as ações, para serem realizadas, devem
ser autorizadas antes de qualquer acordo ou desacordo efetivo, pois se elas não
forem permitidas, não se pode nem mesmo argumentar a respeito disso.
Contudo,
se alguém pode fazê-lo — e o socialismo também deve considerar que se pode
fazer, na medida em que existe como uma posição intelectual debatida —, isto só
é então possível por causa da existência de fronteiras objetivas da
propriedade, ou seja, fronteiras que cada pessoa pode reconhecer por conta
própria enquanto tais, sem ter que concordar antes com qualquer um no que se
refere ao sistema de valores e de avaliações de terceiros. Portanto, o
socialismo também, apesar daquilo que afirma, deve, de fato, pressupor a
existência de fronteiras objetivas da propriedade em vez de fronteiras
determinadas por avaliações subjetivas, nem que seja para ter um socialista
sobrevivente que possa formular suas propostas morais.
A
ideia socialista de proteger o valor em vez da integridade física também falha
por uma segunda razão relacionada. Evidentemente, o valor de uma pessoa, por
exemplo, no mercado de trabalho ou de casamento pode ser, e realmente é,
afetado pela integridade física de outra pessoa ou pelo grau de integridade física. Dessa forma, se quisermos que os valores da
propriedade sejam protegidos, teríamos que permitir agressão física contra
pessoas. Contudo, se for somente por causa do próprio fato de que as fronteiras
de uma pessoa — ou seja, as fronteiras da propriedade de alguém no seu próprio
corpo enquanto seu domínio de controle exclusivo no qual outra pessoa não é
autorizada a intervir, a não ser que deseje se tornar um agressor — são
fronteiras físicas (intersubjetivamente determinadas e não apenas fronteiras subjetivamente
imaginadas) nas quais todo mundo pode concordar sobre qualquer coisa de forma
independente (e, obviamente, acordo significa um acordo com as unidades
independentes de tomada de decisão!).
Portanto,
somente porque as fronteiras protegidas da propriedade são objetivas, ou seja,
estabelecidas e reconhecidas como previamente fixadas por qualquer acordo
convencional, pode haver argumentação e, possivelmente, acordo entre as
unidades independentes de tomada de decisão. Simplesmente ninguém poderia
argumentar qualquer coisa, a não ser que antes sua existência como unidade
física independente fosse reconhecida. Ninguém poderia argumentar a favor de um
sistema de propriedade que define fronteiras de propriedade segundo uma
avaliação subjetiva — como faz o socialismo — porque, simplesmente, ser capaz
de formular esse argumento pressupõe que, ao contrário do que diz a teoria,
deve-se, de fato, ser uma unidade fisicamente independente a fazê-lo.
A
situação não é menos terrível para o socialismo quando nos voltamos para a
segunda especificação essencial das regras da teoria natural da propriedade. As
normas fundamentais do capitalismo foram caracterizadas não apenas pelo fato de
que a propriedade e a agressão fossem definidas em termos físicos; não era menos
importante que, além disso, a propriedade fosse definida como propriedade
privada individualizada e que o significado da apropriação original — o que
evidentemente significa fazer uma distinção entre o antes e o depois —, fosse
especificada. É com essa especificação adicional que o socialismo também entra
em conflito.
Em
vez de reconhecer a importância vital da distinção do antes-depois para decidir
entre as reivindicações de propriedade conflitantes, o socialismo propõe normas
que, na verdade, consideram que a prioridade é irrelevante para se tomar uma
decisão e que os retardatários têm tanto direito à propriedade quanto os que
chegam primeiro. Claramente, essa ideia está presente quando o socialismo
social-democrata, por exemplo, faz com que os proprietários naturais da riqueza
e/ou seus herdeiros paguem um imposto que os desafortunados retardatários devem
ser capazes de consumir. Essa ideia também está presente, por exemplo, quando o
proprietário de um recurso natural é obrigado a reduzir (ou aumentar) a sua
exploração atual em benefício da posteridade. Em ambos os casos, só faz sentido
fazê-lo quando se considera que a pessoa que acumula primeiro a riqueza ou que
usa primeiro os recursos naturais, comete, desse modo, uma agressão contra
alguns retardatários. Se não fizeram nada de errado, os retardatários não
poderiam fazer essa reivindicação contra os proprietários naturais e os seus
herdeiros.
O
que está errado com essa ideia de suprimir a distinção antes-depois como sendo
moralmente irrelevante? Em primeiro lugar, se os retardatários, ou seja,
aqueles que, de fato, nada fizeram com os bens escassos, tivessem realmente
tanto direito aos bens quanto os que chegaram primeiro, ou seja, aqueles que
fizeram algo com os bens escassos, então, literalmente, ninguém seria
autorizado a fazer coisa alguma com o que quer que seja, como se fosse preciso
ter todo o consentimento prévio dos retardatários para fazer seja lá o que se
quisesse fazer. Realmente, como a posteridade incluiria o filho do filho de
alguém — isto é, pessoas que chegaram tão tardiamente que, provavelmente, nunca
se poderia perguntá-las — defendendo um sistema legal que não utiliza a
distinção antes-depois como parte de sua teoria básica da propriedade é
simplesmente absurdo pois implica em defender a morte, mas pressupor a vida
para defender qualquer coisa.
Nem
nós, nem nossos antepassados, nem nossos descendentes poderiam sobreviver ou
sobreviveriam, e dizer ou argumentar qualquer coisa se tivessem que seguir essa
regra. Para que qualquer pessoa — do presente, do passado ou do futuro —
pudesse argumentar qualquer coisa deveria ser possível sobreviver agora.
Ninguém pode esperar e interromper a ação até que cada um de uma classe
indeterminada de retardatários começassem a aparecer e concordar com aquilo que
se quer fazer. Em vez disso, na medida em que uma pessoa encontra-se sozinha,
ela deve ser capaz de agir, usar, produzir, consumir imediatamente os bens
antes de qualquer acordo com pessoas que simplesmente ainda não estão ao redor
(e talvez nunca estejam).
E
na medida em que uma pessoa encontra-se na companhia de outras e há um conflito
sobre como usar um dado recurso escasso, ela deve ser capaz de resolver o
problema em algum momento definido com um número específico de pessoas em vez
de ter que esperar por períodos indeterminado de tempo e um número
indeterminado de pessoas. Portanto, para sobreviver, que é pré-requisito para
argumentar a favor ou contra qualquer coisa, os direitos de propriedade não
podem ser concebidos como sendo atemporais e não-específicos considerando o
número de pessoas envolvidas. Em vez disso, devem ser necessariamente pensados
como sendo criados através da ação em pontos definidos no tempo por indivíduos
específicos agindo.[9]
Além
disso, a ideia de abandonar a distinção antes-depois, que o socialismo acha tão
sedutora, seria simplesmente incompatível com o princípio da não-agressão como
o fundamento prático da argumentação. Argumentar e possivelmente concordar com
alguém (nem que seja sobre o fato de que há discordância) significa reconhecer
um direito prévio mútuo do controle exclusivo sobre o seu próprio corpo. Caso
contrário, seria impossível para qualquer um falar primeiro em algum momento
definido no tempo e para outra pessoa ser capaz de responder, ou vice-versa,
assim como nem o primeiro nem o segundo orador seriam mais, em qualquer momento
unidades físicas independentes de tomada de decisão.
Portanto,
eliminar a distinção antes-depois, como o socialismo tenta fazer, é equivalente
a eliminar a possibilidade de argumentar e obter um entendimento. Porém, como
não se pode argumentar que não há possibilidade de discussão sem o controle
prévio de cada pessoa sobre o seu próprio corpo como sendo reconhecido e
aceitado como justo, uma ética do retardatário que não deseja fazer essa
diferença nunca poderia ser acordada por ninguém. Bastaria dizer que isso
poderia significar uma contradição, como se ser capaz de dizer isto pressuporia
sua existência como uma unidade independente de tomada de decisão num momento
definido no tempo.
Consequentemente,
somos obrigados a concluir que a ética socialista é um fracasso completo. Em
todas as suas versões práticas, não é melhor do que uma regra que defenda
coisas como "eu posso bater em você, mas você não pode bater em mim",
que, inclusive, não passa no teste da universalização. E se adotar regras
universais — o que basicamente significaria dizer que "todo mundo pode
bater em todo mundo" —, essas regras não poderiam ser afirmadas, de forma
concebível, como universalmente aceitáveis por conta de suas próprias
especificações materiais.
Simplesmente
afirmar e argumentar dessa forma deve pressupor os direitos de propriedade de
alguém sobre o seu próprio corpo. Portanto, só a ética do capitalismo do
primeiro-que-chega é o primeiro-que-possui pode ser efetivamente defendida como
estando implícita na argumentação. E nenhuma outra ética poderia ser
justificada dessa forma, enquanto que justificar algo no curso da argumentação
significa pressupor a validade dessa ética da teoria natural da propriedade.
[1]
Observe a semelhança estrutural do "a priori da argumentação" para o
"a priori da ação", ou seja, o fato de que não há maneira de refutar
a afirmação de que todo mundo sabe o que significa agir, uma vez que tentar
refutar essa afirmação pressuporia o conhecimento de como realizar determinadas
atividades. De fato, o caráter incontestável do conhecimento sobre o
significado da validade das alegações e da ação estão intimamente ligadas. Por
um lado, as ações são mais fundamentais do que a argumentação de cuja
existência surge a ideia da validade, assim como a argumentação é claramente
apenas uma subcategoria da ação. Por outro lado, dizer o que foi dito sobre a
ação e argumentação, e sobre a sua relação mútua, já exige uma argumentação e,
portanto, nesse sentido (isto é, epistemológico), a argumentação deve ser
considerada mais fundamental do que a ação não-argumentativa. Mas como também é
a epistemologia que revela a ideia de que, apesar disto não poder ser conhecido
previamente por qualquer argumentação, de fato, o desenvolvimento da
argumentação pressupõe ação na qual as alegações de validade só podem ser
explicitamente discutidas num argumento se as pessoas que o fazem já souberem o
que significa ter conhecimento implícito nas ações; ambos, o significado da
ação em geral e o da argumentação em particular, devem ser pensados como fios
entrelaçados logicamente necessários de um conhecimento a priori.
[2]
Metodologicamente, nossa abordagem exibe uma semelhança muito próxima daquilo
que A. Gewirth descreveu como o "método dialeticamente necessário"
(Reason and Morality, Chicago, 1978, p.42-47) — um método de raciocínio a
priori moldado na ideia kantiana de deduções transcendentais. Mas,
infelizmente, em seu importante estudo, Gewirth escolhe o ponto de partida
equivocado para desenvolver a sua análise. Ele tenta deduzir um sistema ético
não do conceito de argumentação, mas de um conceito de ação. Contudo, isto
certamente não pode funcionar porque do fato corretamente demonstrado de que ao
agir um agente deve, por necessidade, pressupor a existência de determinados
valores ou bens, disso não deduz-se que tais bens são, portanto,
universalizáveis e devem, por isso, ser respeitados por terceiros como sendo
bens do agente por direito (sobre a exigência das afirmações normativas serem
universalizáveis, conferir a discussão posterior).
Em vez
disso, a ideia da verdade, ou no que se refere à moral, dos direitos ou bens
universalizáveis só surge com a argumentação enquanto uma subcategoria especial
de ações, mas não da ação enquanto tal, como é claramente revelado pelo fato de
que Gewirth também não está simplesmente envolvido na ação, mas mais
especificamente na argumentação quando ele tenta nos convencer da verdade
necessária do seu sistema ético. No entanto, reconhecida a argumentação como o
único ponto de partida adequado para o método dialeticamente necessário,
resulta daí, como veremos, uma ética capitalista (ou seja, não-Gewirthiana).
Sobre as imperfeições da tentativa de Gewirth de tentar deduzir direitos
universalizáveis da ideia de ação, cf. também as observações perspicazes de M.
MacIntyre, Depois da Virtude: Um Estudo em Teoria Moral, Bauru: EDUSC, 2001; J.
Habermas, Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, Frankfurt/M., 1983,
p.110-111; e H. Veatch, Human Rights, Baton Rouge, 1985, p.159-160.
[3] A
relação entre a nossa abordagem e a abordagem dos "direitos naturais"
pode ser agora descrita detalhadamente. A lei natural ou a tradição dos
direitos naturais do pensamento filosófico sustenta que as normas
universalmente válidas podem ser percebidas por meio da razão enquanto
fundamentadas na própria natureza do homem. Tem havido uma disputa notória em
relação a essa posição, mesmo por parte dos leitores simpatizantes, de que o
conceito de natureza humana é "muito difuso e variado para fornecer um
determinado conjunto de conteúdos da lei natural" (A. Gewirth, "Law,
Action, and Morality" in: Georgetown Symposium on Ethics. Essays
in Honor of H. Veatch (ed. R. Porreco), New York, 1984, p.73). Além disso, sua descrição de
racionalidade é igualmente ambígua na medida em que não parece distinguir entre
o papel da razão para estabelecer, por um lado, leis empíricas da natureza, e,
por outro lado, leis normativas de conduta humana (Cf., por exemplo, a
discussão em H. Veatch, Human Rights, Baton Rouge, 1985, p.62-67.).
Ao
reconhecer o conceito mais estrito de argumentação (em vez do mais amplo da
natureza humana) como o ponto de partida necessário para se derivar uma ética e
ao atribuir ao raciocínio moral o status de um raciocínio a priori, para ser
claramente diferenciado do papel desempenhado pela razão na investigação
empírica, nossa abordagem não só pretende evitar essas dificuldades desde o
início, mas pretende, desse modo, ser mais uma vez honesta e rigorosa. E ainda
para me dissociar da tradição dos direitos naturais, o que não quer dizer que
eu não pudesse concordar com a avaliação crítica da maioria da teoria ética
contemporânea; de fato, eu concordo com a refutação complementar de toda a
ética do desejo (teológica, utilitária) formulada por H. Veatch tanto quanto
toda a ética (consulte Human Rights, Baton Rouge, 1985, capítulo 1) do dever
(deontológica). E nem eu afirmo que seja impossível interpretar a minha
abordagem como dentro de uma tradição dos direitos naturais "corretamente
concebida". Porém, o que eu afirmo é que a abordagem resultante está
claramente em desacordo com o que veio a se transformar a abordagem dos direitos
naturais e que esta nada possui dessa tradição tal como ela se posiciona.
[4] O
princípio da universalização figura, de fato, com destaque entre todas as
abordagens cognitivas sobre a moral. Para a exposição clássica desse princípio,
cf. I. Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Coimbra: Almedina, 2011,
e Crítica da Razão Prática, São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[5]
Deve ser observado aqui que só porque existe a escassez há mesmo um problema de
formulação de leis morais; à medida que os bens são superabundantes (bens
"livres") nenhum conflito sobre o uso dos bens é possível e nenhuma
ação-coordenação é necessária. Consequentemente, deduz-se que qualquer ética
corretamente concebida deve ser formulada como uma teoria da propriedade, ou
seja, uma teoria de atribuição dos direitos de controle exclusivo dos meios
escassos. Porque só assim se torna
possível evitar o conflito que, de outra forma, seria inescapável e insolúvel.
Infelizmente, os filósofos morais, em sua ignorância generalizada sobre economia,
dificilmente veriam isso com clareza suficiente. Em vez disso, como, por
exemplo, H. Veatch (Human Rights, Baton Rouge, 1985, p. 170), eles parecem
achar que podem fazê-lo sem uma definição precisa de propriedade e dos direitos
de propriedade só para depois necessariamente acabarem num mar de imprecisão e
adhocismos (N.T.: derivação de ad hoc, que significa "para isso" ou
"para esta finalidade"). Sobre os direitos humanos como direitos de
propriedade, cf. também M. N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig
von Mises Brasil, 2010, capítulo 15.
[6]
Esta é, por exemplo, a posição adotada por J.J. Rousseau quando ele nos pede
para resistirmos à tentativa de aquisição privada dos recursos dados pela
natureza construindo uma cerca em volta deles. Em sua famosa máxima, ele diz:
"evitai ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os
frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém" (Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, São Paulo: Abril
Cultural, 1983, p.259). Porém, só é possível argumentar dessa forma se for
possível considerar que a reivindicação da propriedade pode ser justificada por
decreto. Porque, como poderia "todos" (ou seja, até aqueles que nunca
fizeram nada com os recursos em questão) ou "ninguém" (ou seja, nem
mesmo aqueles que realmente os utilizaram) possuírem alguma coisa, a menos que
as reivindicações de propriedade fossem feitas por decreto?!
[7] M.
N. Rothbard escreveu o seguinte em A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von
Mises Brasil, 2010, p.89: "Pois bem, qualquer pessoa que participa de
qualquer tipo de discussão, incluindo uma sobre valores, está, em virtude desta
participação, viva e afirmando a vida. Pois, se ela realmente fosse contrária à
vida, ela não teria nenhum interesse em continuar vivo. Consequentemente, o
suposto opositor da vida está realmente afirmando-a no próprio curso de sua
argumentação e, por isso, a preservação e a proteção da vida de alguém assumem
a categoria de um axioma incontestável". Cf. também D.
Osterfeld, "The Natural Rights Debate", in: Journal of Libertarian
Studies, VII, I, 1983, p.106 et seq.
[8]
Sobre a ideia de violência estrutural como sendo diferente da violência física
cf. D. Senghaas (ed.), Imperialismus und strukturelle Gewalt, Frankfurt/M.,
1972.
A
ideia de definir agressão como uma invasão dos valores da propriedade também
fundamenta as teorias de justiça tanto de Rawls quanto de Nozick, no entanto,
podem ter aparecido muitos comentadores diferentes desses dois autores. Pois
como poderia pensar sobre o seu chamado princípio da diferença — "as
desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma a (…) que
sejam razoavelmente esperadas como sendo uma vantagem ou benefício para todo
mundo, incluindo os menos favorecidos" (J. Rawls, Uma Teoria da Justiça,
Lisboa: Editorial Presença, 2001, p. 68-71 e 78-84) — como sendo justificado, a
não ser que Rawls acreditasse que bastava aumentar a riqueza relativa que uma
pessoa afortunada cometesse uma agressão e que uma menos afortunada, portanto,
teria uma reivindicação válida contra a pessoa mais afortunada só porque a sua
posição relativa em termos de valor se deteriorou?
E como
Nozick poderia alegar como sendo justificável uma "agência de proteção
dominante" banir seus concorrentes, independentemente de quais teriam sido
as suas ações (R. Nozick, Anarquia, Estado e Utopia, Rio de Janeiro: Zahar,
1991, p.27 et seq.)? Ou como ele poderia acreditar que seria moralmente correto
proibir as trocas improdutivas, ou seja, trocas onde uma parte estivesse numa
melhor situação se a outra não existisse, ou pelo menos não tivessem nada a ver
com isso (como, por exemplo, no caso de um chantageado e de um chantageador),
independentemente se uma troca envolvesse ou não a invasão física de qualquer
espécie (Ibid., p. 79 et seq.), a menos que ele pensasse no direito existente
de se preservar a integridade dos valores (em vez da integridade física) da
propriedade de alguém?! Para uma crítica devastadora da teoria de Nozick cf. M.
N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010,
capítulo 29; sobre o uso falacioso da análise das curvas de indiferença feito
tanto por Rawls quanto por Nozick, cf. "Toward a
Reconstruction of Utility and Welfare Economics", Center for Libertarian
Studies, Occasional Paper No. 3, New York, 1977.
[9]
Note-se também aqui que somente se os direitos de propriedade forem
conceituados como direitos de propriedade privada que se originam no tempo
torna-se possível estabelecer contratos. Claramente, os contratos são acordos
entre inúmeras unidades fisicamente independentes baseados no reconhecimento
mútuo das reivindicações de cada contratante da propriedade privada em relação
às coisas adquiridas antes do acordo e que, portanto, dizem respeito à
transferência dos títulos de propriedade das coisas definidas de um
proprietário anterior para um proprietário posterior. Não há tal coisa como
'contratos que podem existir de forma concebível no âmbito de uma ética do
retardatário'!
*Hans-Hermann Hoppe é
um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da
Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian
Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em
Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre
Socialismo e Capitalismo e The Economics and Ethics of Private Property.
O livro pode ser adquirido em: http://context0.blogspot.com.es/2014/11/a-justificativa-etica-do-capitalismo-e.html
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