Democracia e ditadura
por Denis Lerrer Rosenfield*
O discurso da diplomacia brasileira acerca da Venezuela e dos demais
países bolivarianos segue a doutrina do PT, segundo a qual estaríamos diante de
uma democracia pelo simples fato de lá haver eleições. Eleições seriam, então,
o único critério de definição de Estados democráticos, com evidente desprezo
pelas instituições da sociedade civil. Mais concretamente, há total
desconsideração pelo equilíbrio entre Poderes e pela independência dos Poderes
Judiciário e Legislativo. A liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em
geral é sistematicamente pisoteada, se não aniquilada.
Nesse sentido, a "democracia" poderia prescindir das
liberdades civis e políticas, devendo contentar-se com eleições e referendos,
cada vez mais restritos, pois as condições de competitividade são
progressivamente reduzidas. De fato, a democracia representativa nesses países
"socialistas" é substituída, para retomar um conceito de J. L.
Talmon, pela democracia totalitária.
A democracia representativa caracteriza-se por ser constitucional,
obedecendo a princípios que fogem a qualquer deliberação popular.
Consequentemente, não pode ser objeto de deliberação a igualdade de gêneros ou
de raças. Uma maioria popular machista ou racista não se poderia impor numa
democracia representativa, graças aos limites constitucionais, de princípios e
valores, por ela assegurados.
Segundo a democracia totalitária, o poder reside na vontade popular
encarnada pelo líder carismático. Não tem este, em razão da delegação popular
recebida, nenhuma limitação, como se eleições o autorizassem, virtualmente, a
fazer qualquer coisa. Basta um referendo para que isso ocorra. Foi o que
aconteceu com o "socialismo do século 21", nas figuras de Hugo Chávez
e de sua caricatura, Nicolás Maduro, que aboliram a separação de Poderes,
emascularam o Judiciário e o Legislativo, fazendo do Executivo o único Poder
que conta.
A economia de mercado, por sua vez, foi cerceada, quando não
aniquilada, tendo como consequência o domínio do Estado, cujos efeitos mais
nítidos são a inflação galopante e a falta de produtos básicos - o papel
higiênico é o mais emblemático deles. Já a liberdade de imprensa e dos meios de
comunicação em geral foi sendo suprimida, só sobrando, hoje, o resquício de uma
sociedade livre. Milícias no melhor estilo das SA nazistas aterrorizam a
população, fazendo uso da violência e do assassinato sempre e quando o líder
máximo o exigir. Tudo, evidentemente, em nome da "revolução" e do
"socialismo".
Não obstante, o Itamaraty e setores do PT continuam a justificar a
"democracia venezuelana", como se os protestos do que ainda resta de
oposição fossem o real perigo. Ora, as posições estão totalmente invertidas. A
dita "cláusula democrática", bem entendida, significaria, apenas, a
"cláusula democrática totalitária".
Do ponto de vista diplomático, por uma questão de pudor, não se pode
acatar o argumento de que o Brasil não se ingere em assuntos de outros países,
uma vez que foi bem isso que fez no Paraguai. O então presidente Fernando Lugo
foi afastado do poder por um impeachment, segundo a legislação paraguaia. O
governo brasileiro não reconheceu o impeachment e aproveitou a ocasião para
suspender esse país do Mercosul, tornando viável, dessa maneira, a entrada da
Venezuela. É evidente o uso de dois pesos e duas medidas.
Nessa perspectiva, poderíamos aplicar os mesmos critérios para o que
se denomina ditadura militar brasileira, com o intuito de melhor apreciarmos a
"verdade" do período, contrastada com o juízo "democrático"
do atual governo a propósito do "socialismo do século 21".
Considera-se a ditadura militar como se estendendo desde o governo Castelo
Branco até o final do governo Figueiredo, quando há diferenças significativas
nesse longo período. O governo Castelo Branco, por exemplo, tinha inclinação
liberal, enquanto o governo Geisel foi fortemente estatizante. Segundo esse
critério, o governo Dilma Rousseff se encaixaria na concepção geiselista, com
forte intervenção do Estado na economia, a escolha de empresas e setores
privilegiados a serem apoiados e o uso da política fiscal e de subsídios para o
apoio a esses grupos. Seria Geisel de esquerda, conforme essa concepção? Mais
ou menos democrático? E Lula, em seu primeiro mandato, seria castelista?
Durante o período do governo Castelo Branco (1964-1967) até o Ato
Institucional n.º 5, promulgado por Costa e Silva em setembro de 1968, o País
desfrutava ampla liberdade. Foi esse ato extinto em 1978 por Geisel e o habeas
corpus, restaurado. Penso não ser atrevido dizer que as liberdades civis eram
muito mais respeitadas do que o são nos países que, atualmente, encarnam o
"socialismo do século 21".
A gozação, para não dizer a sátira e a ironia, do Pasquim começou em
1969, quando o regime militar havia endurecido e a ditadura propriamente dita
se estabeleceu. Isto é, a ditadura tolerou o Pasquim, enquanto os governos
bolivarianos não toleram nenhuma crítica, muito menos a que se faz pela sátira
que atinge os seus líderes.
A greve do ABC sob liderança de Lula, então presidente do Sindicato
dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, foi um marco no Brasil,
abrindo efetivamente caminho para a liberdade de participação sindical. Ocorreu
em 1974, sob o governo Geisel. A partir dela novas greves se estenderam de 1978
a 1980, já no governo Figueiredo. Imaginem algo semelhante nos países
bolivarianos. Por muito menos os "socialistas" enviam as suas milícias
e fazem uso de perseguições, prisões, tortura e assassinato.
A Lei da Anistia, negociada entre militares democratas, políticos do
establishment e a oposição do MDB, com amplo apoio da sociedade civil, foi
assinada por Figueiredo em agosto de 1979, abrindo realmente caminho para a
redemocratização do País. Foram os próprios militares que tomaram a iniciativa
de abandonar o poder.
Sem dúvida a "democracia" bolivariana consegue ser mais dura
do que a ditadura brasileira nesses períodos!
Fonte: OESP
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,democracia-e-ditadura,1139083,0.htm
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