Esquerda
tinha ditaduras como modelo
Marco Antonio Villa *
Durante
a ditadura, a oposição de esquerda transformou a experiência dos países
socialistas em referência de democracia. A ditadura do proletariado foi
exaltada como o ápice da liberdade humana e serviu como contraponto ao regime
militar. A falácia tinha uma longa história. Desde os anos 1930 brasileiros
escreveram libelos em defesa do sistema que libertava o homem da opressão
capitalista.
Tudo
começou com URSS, Um Novo Mundo, de Caio Prado Júnior, publicado em 1934,
resultado de uma viagem de dois meses do autor pela União Soviética. Resolveu
escrevê-lo, segundo informa na apresentação, devido ao sucesso das palestras
que teria feito em São Paulo descrevendo a viagem. À época já se sabia do
massacre de milhões de camponeses (a coletivização forçada do campo, 1929-1933)
e a repressão a todas os não bolcheviques.
Prado
Júnior justificou a violência, que segundo ele "está nas mãos das classes
mais democráticas, a começar pelo proletariado, que delas precisam para
destruir a sociedade burguesa e construir a sociedade socialista". A feroz
ditadura foi assim retratada: "O regime soviético representa a mais
perfeita comunhão de governados e governantes". O autor regressou à União
Soviética 27 anos depois. Publicou seu relato com o título O Mundo do
Socialismo. Logo de início escreveu que estava "convencido dessa
transformação (socialista), e que a humanidade toda marcha para ela".
Em
1960, Caio Prado não poderia ignorar a repressão soviética. A invasão da
Hungria e os campos de concentração stalinistas estavam na memória. Mas o
historiador exaltava "o que ocorre no terreno da liberdade de expressão do
pensamento, oral e escrito", acrescentando: "Nada há nos países
capitalistas que mesmo de longe se compare com o que a respeito ocorre na União
Soviética". E continua escamoteando a ditadura: "Os aparelhos
especiais de repressão interna desapareceram por completo. Tem-se neles a mais
total liberdade de movimentos, e não há sinais de restrições além das
ordinárias e normais que se encontram em qualquer outro lugar."
Seguindo
pelo mesmo caminho está Jorge Amado, Prêmio Stalin da Paz de 1951. Isso mesmo:
o tirano que ordenou o massacre de milhões de soviéticos dava seu nome a um
prêmio "da paz". Antes de visitar a União Soviética e publicar um
livro relatando as maravilhas do socialismo - o que ocorreu em 1951 -, Amado
escreveu uma laudatória biografia de Luís Carlos Prestes. A União Soviética foi
retratada da seguinte forma: "Pátria dos trabalhadores do mundo, pátria da
ciência, da arte, da cultura, da beleza e da liberdade. Pátria da justiça
humana, sonho dos poetas que os operários e os camponeses fizeram realidade
magnífica".
A
partir dos anos 1970, o foco foi saindo da União Soviética e se dirigindo a
outros países socialistas. Em parte devido aos diversos rachas na esquerda
brasileira. Cada agrupamento foi escolhendo a sua "referência", o
país-modelo. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) optou pela Albânia. O país
mais atrasado da Europa virou a meca dos antigos maoistas, como pode ser visto
no livro O Socialismo na Albânia, de Jaime Sautchuk. O jornalista visitou o
país e não viu nenhuma repressão. Apresentou um retrato róseo. Ao visitar um
apartamento escolhido pelo governo, notou que não havia gás de cozinha. O fogão
funcionava graças à lenha ou ao carvão. Isso foi registrado como algo
absolutamente natural.
O
culto da personalidade de Enver Hoxha, o tirano albanês, segundo Sautchuk, não
era incentivado pelo governo. Era de forma natural que a divinização do líder
começava nos jardins de infância onde era chamado de "titio Enver".
As condenações à morte de dirigentes que se opuseram ao ditador foram
justificadas por razões de Estado. Assim como a censura à imprensa.
Com
o desgaste dos modelos soviético, chinês e albanês, Cuba passou a ocupar o
lugar. Teve papel central neste processo o livro A Ilha, do jornalista Fernando
Morais, que visitou o país em 1977. Quando perguntado sobre os presos
políticos, o ditador Fidel Castro respondeu que "deve haver uns 2 mil ou 3
mil". Tudo isso foi dito naturalmente - e aceito pelo entrevistador.
Um
dos piores momentos do livro é quando Morais perguntou para um jornalista se em
Cuba existia liberdade de imprensa. A resposta foi uma gargalhada: "Claro
que não. Liberdade de imprensa é apenas um eufemismo burguês". Outro
jornalista completou: "Liberdade de imprensa para atacar um governo
voltado para o proletariado? Isso nós não temos. E nos orgulhamos muito de não
ter". O silêncio de Morais, para o leitor, é sinal de concordância. O pior
é que vivíamos sob o tacão da censura.
O
mais estranho é que essa literatura era consumida como um instrumento de
combate do regime militar. Causa perplexidade como os valores democráticos
resistiram aos golpes do poder (a direita) e de seus opositores (a esquerda).
* historiador,
é autor, entre outros livros, de 'ditadura à brasileira. 1964-1985. a
democracia golpeada à esquerda e à direita' (leya).
Fonte: OESP
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