segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Patrimonialismo Selvagem


O Patrimonialismo Selvagem*

Rodrigo Constantino

Empresários de todo o Brasil, uni-vos! Não tendes nada a perder, senão os grilhões do Estado patrimonialista selvagem!” (J. O. de Meira Penna)

O embaixador José Osvaldo de Meira Penna foi um dos pensadores que melhor dissecaram o patrimonialismo vigente na política brasileira, buscando suas origens na herança cultural do povo. O resultado foi sua excelente obra O Dinossauro, publicado em 1988, mas que infelizmente não ficou nada ultrapassada mesmo duas décadas depois. Sua tese é de que a ideologia nacional-socialista, “origem do social-estatismo asfixiante que assoberba o mundo moderno”, é reflexo de uma reação passional ao Racionalismo da Idade da Razão. O Romantismo, tendo como um dos ícones a figura de Rousseau, explicaria boa parte da mentalidade nacional que acabou levando a este modelo estatal ultrapassado.
Meira Penna diz: “A forma política mais comum do romantismo político é o chamado Culto da Personalidade do herói salvador e messiânico”. Basta olhar para a América Latina e verificar como isso sempre foi uma infeliz realidade aqui. A opção preferencial pelos pobres, boêmios, fracassados, falidos, a exaltação do criminoso, do assaltante, é herança do mito romântico que Rousseau inaugurou. O desprezo pela racionalidade, o “sentir” colocado acima do “pensar”, é um traço claro desse legado.
A postura de eterno adolescente buscando confrontar qualquer tipo de estrutura estabelecida ou autoridade, o sonho utópico desprovido de lógica, o sentimentalismo, são características que fascinaram uma sociedade que procurava uma forma de fuga emocional. O conceito da “Vontade Geral” coletivista transformando indivíduos em frações sacrificáveis, que levou Benjamin Constant a acusar Rousseau da criação do “mais terrível instrumento para toda espécie de despotismo”, é ainda parte da herança desse romantismo presente na mentalidade nacional. Por fim, a ideia do “bom selvagem”, colocando na “sociedade” a culpa por todos os males e eximindo de responsabilidade o indivíduo, é marca ainda presente na cultura brasileira, com nefastas consequências.
A vida política pode ser comparada a uma Grande Família, uma “organização que se mantém necessariamente pela força dos laços afetivos”. A busca por privilégios é o passo natural, contrário ao princípio de isonomia presente no império das leis do mundo anglo-saxão. Conforme explica o autor, “surge uma vasta tessitura clientelista e familiar que mantém sua coesão pela discriminação privilegiada de seus membros”. A lógica fria do método cartesiano não faz parte desse jogo. O cargo público é confundido com a propriedade privada, sendo isso uma das maiores fontes de corrupção. “Patrimonialismo significa confusão entre o que é público e o que é privado”. A vinda da corte lusitana com seu enorme séquito de “amigos do rei” dá origem a esse tipo de modelo, influenciado ainda pelo romantismo francês. Essa falha na formação cultural teve consequências fatais para o desenvolvimento.
Em contrapartida, a Idade da Razão lança, no campo econômico, as bases do capitalismo industrial moderno, que tanta riqueza gerou. O desenvolvimento seria fruto de uma atitude “racional, liberal, competitiva e pragmática perante as exigências da vida material”. Quem perde o bonde, por não ter chegado ainda na Idade da Razão, acaba vítima de uma tendência demasiadamente humana, que é pôr a culpa do fracasso em cima dos outros. A busca por causas exógenas, projetando a culpa sobre bodes expiatórios, é alimentada pelo vício da inveja, “a mais antissocial das paixões”, como dizia Mill. O ressentimento pelo fracasso incomoda, e é muito mais fácil esbravejar contra o rico, especialmente se for estrangeiro, do que fazer o dever de casa. A defasagem do nosso progresso poderia ser explicada, em parte, pela “míngua em nosso caráter nacional das virtudes racionais da operosidade, organização, poupança, seriedade, obediência à lei, disciplina intelectual e moral”, em suma, de virtudes ausentes na terra do “homem cordial”.
Meira Penna aborda diferentes estudos do patrimonialismo, passando pelos trabalhos de Raimundo Faoro, Ricardo Vélez Rodríguez, Max Weber e outros. Ele não gosta da expressão “capitalismo de Estado”, usada por Faoro em Os Donos do Poder, já que patrimonialismo pode expressar melhor o fenômeno, sem gerar tanta confusão. Ele resume: “O termo mais adequado para descrição da organização socioeconômica do Brasil desde a época colonial é o de ‘patrimonialismo mercantilista’”. A sua essência é o aproveitamento privado da coisa pública, como o coronelismo, clientelismo, empreguismo etc. O Estado é paternalista, intervencionista e autoritário. Uma “patota” assume o poder e forma uma entidade do tipo cosa nostra, como na máfia siciliana. Este esquema não é visto como imoral por seus participantes. Não há espaço algum para o livre mercado.
Ricardo Vélez Rodríguez, em sua obra sobre o patrimonialismo, enfatiza que o Estado é visto e administrado como um bem de família pela classe política. Para ele, “esse é o principal problema que atravanca o desenvolvimento no nosso continente”. A dominação patrimonial “manipula as massas desprotegidas mediante o paternalismo de Estado, ensejando assim o ideal do ‘pai do povo’, tão comum em contextos patrimoniais”. Para Vélez, “a prática do nepotismo e do clientelismo constitui o principal caminho por meio do qual se efetiva a privatização do Estado”. Trata-se de um modelo mercantilista, onde “o orçamento do Estado é entendido como butim a ser distribuído clientelisticamente entre amigos e apaniguados”.
O socialismo acaba servindo como munição ideológica para os que almejam esse poder. Pode no máximo trocar de mãos, mas não reduz o poder estatal em si. Seu vício fatal é a “concentração do poder político e do poder econômico nas mesmas mãos”. A simbiose entre socialistas e mercantilistas não ocorre por acaso. Na teoria do mercantilismo estava expresso o “reconhecimento de que a riqueza econômica constitui um instrumento da política de segurança e expansão do poder nacional”.
Os mercantilistas queriam o poder nacional, assim como os socialistas. Os burgueses são desprezados por ambos. A xenofobia acaba sendo marca registrada nos dois casos, despertando o sentimento “nacionalista”. Este casamento leva ao nacional-socialismo, onde o governo concentra amplos poderes econômicos e os estrangeiros são vistos como inimigos potenciais. Segue um ineficiente protecionismo, com tarifas proibitivas para produtos importados, subsídios favorecendo os aliados do governo e todo tipo de privilégio à custa dos consumidores. Este modelo representa o oposto do livre comércio defendido pelos liberais.
A estatização da economia e uma onipresente burocracia são resultados inevitáveis dessa mentalidade. A concentração de renda no país é resultado dessa gigantesca burocracia estatal, e basta observar a renda per capita de Brasília para comprovar. Na cabeça desse dinossauro reina, soberana, “a verdadeira classe dita ‘exploradora’, ‘dominante’ e ‘opressora’: a classe burocrática patrimonialista, ideologicamente legitimada pelos intelectuais da esquerda festiva nacional-socialista”. Não se muda isso por decreto, já que é fruto de uma mentalidade que vem de longa data, enraizada na cultura nacional, representada pelo herói sem caráter Macunaíma e pelo “jeitinho” brasileiro. É preciso mudar a mentalidade do povo.
Está na hora de mostrar que o verdadeiro inimigo não é o capitalismo de livre mercado, mas o Estado patrimonialista, os “intelectuais” que o defendem, a burocracia que toma a máquina estatal para si como se fosse propriedade sua. O país precisa abraçar o liberalismo para derrotar o dinossauro!

*Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.




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