O fardo de nosso tempo
Alberto Dines*
O
objetivo dos sicários que fuzilaram os jornalistas do Charlie Hebdo não era o
de liquidar a liberdade de expressão. Bárbaros, primitivos, não têm noção de
conceitos tão subjetivos e abstratos. Pretendiam dividir a França, exacerbar a
confrontação étnico-religiosa, estendê-la além das hostilidades entre
islamófobos, islâmicos pacíficos e secularistas.
Guerras
santas não têm objetivos, mas estratégias. E a dos jihadistas é claramente
imperialista: dividir a ferro e fogo, espalhar-se, dominar. Nada sabem sobre
história, para eles a vida começa e acaba no momento em que puxam o gatilho ou
desembainham adagas. Em algum lugar do seu cérebro, porém, percebem que uma
França dividida divide a Europa, divide o mundo.
Assim
foi durante a Revolução dos Direitos Humanos, que entrou para a história
designada como Francesa (1789-1799), repetiu-se um século depois no affaire
Dreyfus (1894-1906, quando o duelo antissemitismo versus liberalismo alcançou o
âmago da família francesa, espalhou-se pelo mundo e chegou ao Brasil através da
pena libertária de Ruy Barbosa). E assim foi em 1940, quando a direita francesa
entregou-se de corpo e alma não apenas ao poderoso exército de Hitler, mas à
sua insanidade. A França abatida abateu o mundo.
“O
fardo do nosso tempo”, título original do atualíssimo estudo de Hannah Arendt
que acabou intitulado As origens do totalitarismo (1951), aponta para o
antissemitismo como traço comum entre o nazismo e o stalinismo. A jihad
francesa adotou a ferocidade racista através de chacinas contra instituições,
escolas e culminou com o sanguinário ataque nesta sexta a um açougue judeu.
Para livrar-se do sofisticado Trotsky, o totalitário Stalin não escondeu que o
rival judeu era um burguês cosmopolita.
A
França e a cultura francesa são patrimônios da humanidade, cada um de nós é
herdeiro deste esplêndido legado. Somos franceses, mesmo que o idioma inglês
tenha se transformado em língua franca. Romain Rolland, Roger Martin du Gard e
Albert Camus compreenderam muito bem a natureza deste pertencimento. Apesar de
um certo ostracismo na era pós-Mitterrand, esse patrimônio voltou a pulsar nos
últimos dias com o emocionante brado global “Je suis Charlie”.
Aux
armes, citoyens, às armas, cidadãos, canta a Marselhesa – hino nacional francês
há 220 anos –, mas as armas que apareceram nas silenciosas manifestações em
todo o mundo não são as mortíferas Kalashnikov, mas os crayons, os lápis de cor
preferidos pelos desenhistas e cartunistas.
A
França unida será o lema da grande manifestação convocada para este domingo com
a maciça participação dos partidos de esquerda que admitiram a participação dos
conservadores de Sarkozy, mas rejeitaram terminantemente a presença dos
ultradireitistas que seguem a família Le Pen. Exclusão compreensível sob o
ponto de vista moral – a islamofobia e a xenofobia francesas são a principal
alimentadora da jihad. Convenhamos, inadequada.
Inadequada
porque divide – e esta é a hora de juntar, somar, agregar os que se opõem ao
terror. E inadequada porque impede que os lepenistas, hoje tentando
desesperadamente escapar da tentação fascista com uma maquiagem “civilizada”,
abandonem sua pregação original, odiosa, racista.
“Soldados:
do alto destas pirâmides 40 séculos vos contemplam” proclamou no Egito o
general Napoleão Bonaparte, 29 anos, antes de vencer os inimigos ingleses. Hoje
simplificada, mais impactante, a inspirada retórica francesa precisa dizer
àqueles que se deixam esmagar pelo fardo do fanatismo e do fundamentalismo que
a humanidade é singular e plural, concêntrica, única, indivisível.
*Alberto
Dines é jornalista.
Fonte:
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=1525217&tit=O-fardo-de-nosso-tempo
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