A
União Nacional
por Audêncio Torquato* –
O Estado de S.Paulo
26 Outubro 2014
O
Brasil que hoje acorre às urnas, após assistir à mais virulenta campanha desde
os idos de 1989, está rachado ao meio. A profunda divisão que se formou no seio
de grupos, setores e regiões poderia até ser considerada sinal de avanço
político, pelo entendimento de que o escopo democrático se inspira na disputa
entre contrários, se chegássemos ao final do pleito com o peito estufado de
animação cívica, e não com arsenais cheios de ódio e desejo de vingança.
Seja
qual for o mandatário vitorioso, terá de comandar um País conflagrado,
fracionado em duas grandes bandas, separado por gigantesco apartheid, que lhe
vai exigir extraordinário esforço para recompor a união da comunidade política,
destemperada ao correr da campanha eleitoral pelo molho da discórdia. A
agressividade da linguagem usada pelos candidatos deixará feridas abertas por
um bom tempo, eis que os eixos centrais da política foram entortados:
adversários passaram a ser inimigos, o combate às ideias cedeu lugar ao embate
pessoal, a carga expressiva da competição eleitoral saiu da régua do respeito
para descambar no tiroteio chulo. Não será fácil reconstruir a mesa da comunhão
nacional, unir os sonhos da coletividade.
Na
verdade, a cisão social vem sendo, há tempos, alimentada por recorrente
discurso com foco na luta de classes, fenômeno que abandonou as ruas e foi
apagado do discurso político desde a queda do Muro de Berlim. Por estas bandas,
no entanto, a insistência de um partido e suas principais lideranças em manter
vivo o alfabeto da separação - "nós e eles", "elite branca
contra os miseráveis", "ricos e pobres", "Nordeste contra
Sudeste" - contribuiu sobremaneira para expandir os atritos na esfera
social, formando bolsões de animosidade entre grupos partidários, exércitos
militantes e entidades com feição política, como centrais sindicais. O
abecedário separatista não vingou por algumas razões, entre as quais o fato de
estar defasado no tempo e no espaço - principalmente neste nosso espaço
habitado por forte classe média - e ainda porque as fontes primárias da
pregação foram envolvidas, de forma direta ou indireta, pela intensa fumaça de
escândalos, desde os antigos, como o mensalão, aos mais recentes, como o
affaire Petrobrás. O discurso acabou perdendo credibilidade ao bater em ouvidos
descrentes, fazendo eco apenas em grupos limitados.
Ante
esse quadro emerge uma tarefa monumental a ser desempenhada pelo governante do
próximo quadriênio, seja a presidente Dilma Rousseff , seja o senador Aécio
Neves: apaziguar a Nação repartida em raiva e mágoa. O caminho a seguir é
longo, exigindo complexa engenharia na construção de pontes - perfis
respeitados, críveis, sérios, preparados. Sua missão: aplainar o terreno
esburacado e abrir canais de acesso nas áreas política, social e institucional.
Urge
levantar o pressuposto de que os programas de governo em qualquer esfera
temática, para serem bem recebidos pela sociedade, hão de exigir uma comunidade
pacificada, harmônica, identificada com grandes causas. Para tanto os valores
bombardeados na arena eleitoral deverão ser recompostos: a firme crença no País,
a exaltação de ideais, o desinteresse e a abnegação, o resgate da política como
missão, o respeito ao adversário e o compromisso da representação com as bases
políticas. A continuar a ruptura social, sob o bombardeio de exércitos contra e
a favor, veremos no lema da Bandeira, "Ordem e Progresso", uma
antinomia: guerra e caos.
Na
frente política, a engenharia de pontes, liderada por renomados articuladores,
deverá ter uma dificuldade a mais: enfrentar os obstáculos criados por um arco
partidário mais amplo. Na Câmara dos Deputados tomarão assento 28 partidos, a
maior parcela constituída de siglas médias e pequenas, que certamente desejarão
participar da administração. Maior fragmentação partidária vai requerer maior
atenção na composição de interesses. O dilema se escancara. No momento em que
se clama por instrumentos para tirar a política do poço da decadência moral -
esforço que exigirá um mutirão pela reforma política -, o novo governo terá de
compor com mais partidos sedentos de poder. Um desafio e tanto. Com os grandes
partidos a tarefa de harmonização também não será fácil. O que poderá ajudar o
processo de articulação? Um novo ânimo social e a lupa midiática, dois aríetes
que prometem furar o balão da mesmice, mostrando disposição para cobrar uma ordem
política ancorada nos vetores da meritocracia (para indicação a cargos),
transparência, assepsia, moralidade, etc.
A
sinalização de que a sociedade pretende participar do processo político é clara
desde as manifestações de junho de 2013, quando os movimentos organizados
começaram a abrir os portões da democracia direta. Papel importante terão
também as entidades de intermediação social, pois o poder político encontrará
nelas o contraponto para exigir mudanças.
Em
suma, aos vitoriosos caberá o exercício de tomar o pulso da comunidade política
e evitar verbos palanqueiros que instiguem a animosidade e a formação de ilhas
de discriminação no arquipélago social. Aos derrotados se impõe o dever
democrático de aceitar os resultados e, da mesma forma que os vitoriosos,
fechar o dicionário separatista. Nunca foi tão necessário um pacto pela
harmonia social, conduzido com bom senso e emoldurado pelo ideário que ampara o
conceito de Pátria, assim expresso pelo magistral escritor argentino José
Ingenieros: "Os países são expressões geográficas e os Estados são formas
de equilíbrio político. Uma pátria é muito mais que isso: é o sincronismo de
espíritos e corações, comunhão de esperanças, homogênea disposição para o
sacrifício, aspiração à grandeza".
Se
o próximo governante estiver imbuído desse sentimento, veremos cenários menos
turbulentos. Desse modo o Brasil poderá virar uma página muito dolorida e
substituir o espelho retrovisor pelas luzes do amanhã.
*Jornalista,
professor titular da USP, é consultor político e de comunicação
Fonte: OESP
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