Monica Baumgarten de Bolle *
Fonte: Época Negócios
Por que falhou
estrepitosamente a ideia de deixar a inflação subir só um pouquinho para
estimular o crescimento?
Uma quimera, oscilando no
vazio, pode comer segundas intenções?” O gracejo é de Rabelais, mas cai como
uma luva para resumir as dúvidas que cercam a economia brasileira. Procurem no
dicionário e verão que quimera não é só um monstro mítico, a mistura
excessivamente heterogênea de três animais. A quimera, segundo o verbete do
Houaiss, é o “sonho”, a “fantasia”, o “devaneio”, a “falsa ideia”. Eis,
portanto, que a falsa ideia de deixar a inflação subir um pouquinho para que se
possa gerar mais crescimento, esse devaneio que marcou as políticas do governo
nos últimos anos, é uma quimera que oscila no vazio, engolindo qualquer segunda
intenção que se possa ter para o desempenho da economia brasileira.
Nos últimos anos, a inflação
ficou perigosamente próxima do teto da meta, de 6,5%, chegando a ultrapassá-lo
em algumas ocasiões. O crescimento, por sua vez, minguou. É verdade que o
período recente não foi nada fácil para os gestores da política econômica no
Brasil e no mundo. A crise externa e a perda de referências para as políticas
monetária e fiscal – os “afrouxamentos quantitativos” nos países desenvolvidos,
a necessidade de adotar uma postura fiscal despudoradamente expansionista para
evitar uma recessão mais profunda – dificultaram a gestão econômica brasileira.
Contudo, esse quadro permitiu que algumas ousadias oportunistas, que algumas
quimeras, fossem testadas. O sonho de reduzir os juros sem o compromisso de
controlar as despesas do governo, por exemplo. A fantasia de eliminar a fama de
país com os juros mais altos do mundo, enquanto se introduzia a versão tropical
do afrouxamento quantitativo: a farra do crédito público, promovida pelo BNDES
e pela Caixa Econômica Federal. As tentativas de explicar por que a inflação,
afinal, não só podia, como devia, ficar um pouco mais alta para propelir o
crescimento.
O raciocínio era mais ou
menos assim: é preciso aumentar a capacidade de consumo da economia brasileira
facilitando o crédito, inclusive por meio da redução dos juros. Afinal, se as
pessoas consumirem mais, as empresas terão de investir mais para atender a essa
demanda. Em um primeiro momento, a estratégia resulta numa inflação mais alta.
Todavia, quando o investimento se materializa, a inflação cai, pois há mais oferta,
e o crescimento vem, porque há mais de tudo – consumo e investimento.
O raciocínio falhou
estrepitosamente. O consumo veio, mas o câmbio mais valorizado, resultado tanto
dos desequilíbrios externos quanto dos desarranjos domésticos, incentivou as
pessoas a comprarem produtos mais baratos lá fora. Portanto, as empresas
brasileiras, oneradas pelos tributos elevados e pelos salários salgados,
perderam capacidade de investir, além de não terem sido beneficiadas pela
promessa do consumo, que vazou para além das nossas fronteiras. Quando o
investimento engasgou, o governo se assustou. Lançou mão de diversas medidas
para recuperá-lo, mas, sem uma estratégia clara e um discurso coerente, não
conseguiu reverter o pessimismo caudaloso. Enquanto o investimento empacava e o
governo agia com desonerações setoriais e uma série de outras políticas
pontuais, o quadro fiscal piorava. A deterioração das contas públicas pariu a
quimera da contabilidade criativa, essa que corroeu o que restava de
credibilidade ao governo. Deu-se o círculo vicioso de pessimismo e de discursos
disparatados.
Enquanto isso, as políticas
desgovernadas alimentavam a inflação. A própria inflação alimentava a si, já
que os mecanismos de indexação informais são implacáveis. A regra de reajuste
do salário mínimo, essa que o corrige pela variação do PIB de dois anos atrás e
pela inflação do ano anterior, também deu a sua contribuição. Quando tudo ficou
complicado demais, caro demais, perigoso demais, o governo interferiu. Não
mudando os rumos das políticas, isso não. O governo seguiu outro caminho, o das
interferências diretas no processo de formação de preços, não só dos
combustíveis, mas das tarifas de energia elétrica e de transporte. A inflação
não cedeu, as expectativas pioraram e tudo ficou ainda mais difícil.
E agora, faz-se o que com
essa mistura de leão, cabra e serpente que é a economia brasileira, esse bicho
que ninguém consegue imaginar? Aprumar as políticas é um começo. O Banco
Central já está fazendo isso. Urge que o Ministério da Fazenda o acompanhe.
Caso contrário, corremos o sério risco de continuar oscilando no vazio. E de
virar um verbete indigesto de dicionário.
* Macroeconomista,
sócia-diretora da Galanto Consultoria e diretora do Instituto de Estudos de
Política Econômica - Casa das Garças (IEPE/CdG), além de professora do
Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-RJ). Chefiou a área de Pesquisa Macroeconômica Internacional do Banco BBM
de 2005 a 2006. Foi economista do Fundo Monetário Internacional em Washington,
D.C. entre 2000 e 2005, tendo participado da reestruturação da dívida soberana
do Uruguai e escrito diversas notas técnicas sobre o tema. É Ph.D. em Economia
pela London School of Economics, com especialização em crises financeiras.
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