terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Brasil, entre dúvidas e quimeras


Monica Baumgarten de Bolle *

Fonte: Época Negócios

Por que falhou estrepitosamente a ideia de deixar a inflação subir só um pouquinho para estimular o crescimento?

Uma quimera, oscilando no vazio, pode comer segundas intenções?” O gracejo é de Rabelais, mas cai como uma luva para resumir as dúvidas que cercam a economia brasileira. Procurem no dicionário e verão que quimera não é só um monstro mítico, a mistura excessivamente heterogênea de três animais. A quimera, segundo o verbete do Houaiss, é o “sonho”, a “fantasia”, o “devaneio”, a “falsa ideia”. Eis, portanto, que a falsa ideia de deixar a inflação subir um pouquinho para que se possa gerar mais crescimento, esse devaneio que marcou as políticas do governo nos últimos anos, é uma quimera que oscila no vazio, engolindo qualquer segunda intenção que se possa ter para o desempenho da economia brasileira.

Nos últimos anos, a inflação ficou perigosamente próxima do teto da meta, de 6,5%, chegando a ultrapassá-lo em algumas ocasiões. O crescimento, por sua vez, minguou. É verdade que o período recente não foi nada fácil para os gestores da política econômica no Brasil e no mundo. A crise externa e a perda de referências para as políticas monetária e fiscal – os “afrouxamentos quantitativos” nos países desenvolvidos, a necessidade de adotar uma postura fiscal despudoradamente expansionista para evitar uma recessão mais profunda – dificultaram a gestão econômica brasileira. Contudo, esse quadro permitiu que algumas ousadias oportunistas, que algumas quimeras, fossem testadas. O sonho de reduzir os juros sem o compromisso de controlar as despesas do governo, por exemplo. A fantasia de eliminar a fama de país com os juros mais altos do mundo, enquanto se introduzia a versão tropical do afrouxamento quantitativo: a farra do crédito público, promovida pelo BNDES e pela Caixa Econômica Federal. As tentativas de explicar por que a inflação, afinal, não só podia, como devia, ficar um pouco mais alta para propelir o crescimento.

O raciocínio era mais ou menos assim: é preciso aumentar a capacidade de consumo da economia brasileira facilitando o crédito, inclusive por meio da redução dos juros. Afinal, se as pessoas consumirem mais, as empresas terão de investir mais para atender a essa demanda. Em um primeiro momento, a estratégia resulta numa inflação mais alta. Todavia, quando o investimento se materializa, a inflação cai, pois há mais oferta, e o crescimento vem, porque há mais de tudo – consumo e investimento.
O raciocínio falhou estrepitosamente. O consumo veio, mas o câmbio mais valorizado, resultado tanto dos desequilíbrios externos quanto dos desarranjos domésticos, incentivou as pessoas a comprarem produtos mais baratos lá fora. Portanto, as empresas brasileiras, oneradas pelos tributos elevados e pelos salários salgados, perderam capacidade de investir, além de não terem sido beneficiadas pela promessa do consumo, que vazou para além das nossas fronteiras. Quando o investimento engasgou, o governo se assustou. Lançou mão de diversas medidas para recuperá-lo, mas, sem uma estratégia clara e um discurso coerente, não conseguiu reverter o pessimismo caudaloso. Enquanto o investimento empacava e o governo agia com desonerações setoriais e uma série de outras políticas pontuais, o quadro fiscal piorava. A deterioração das contas públicas pariu a quimera da contabilidade criativa, essa que corroeu o que restava de credibilidade ao governo. Deu-se o círculo vicioso de pessimismo e de discursos disparatados.

Enquanto isso, as políticas desgovernadas alimentavam a inflação. A própria inflação alimentava a si, já que os mecanismos de indexação informais são implacáveis. A regra de reajuste do salário mínimo, essa que o corrige pela variação do PIB de dois anos atrás e pela inflação do ano anterior, também deu a sua contribuição. Quando tudo ficou complicado demais, caro demais, perigoso demais, o governo interferiu. Não mudando os rumos das políticas, isso não. O governo seguiu outro caminho, o das interferências diretas no processo de formação de preços, não só dos combustíveis, mas das tarifas de energia elétrica e de transporte. A inflação não cedeu, as expectativas pioraram e tudo ficou ainda mais difícil.
E agora, faz-se o que com essa mistura de leão, cabra e serpente que é a economia brasileira, esse bicho que ninguém consegue imaginar? Aprumar as políticas é um começo. O Banco Central já está fazendo isso. Urge que o Ministério da Fazenda o acompanhe. Caso contrário, corremos o sério risco de continuar oscilando no vazio. E de virar um verbete indigesto de dicionário.


Macroeconomista, sócia-diretora da Galanto Consultoria e diretora do Instituto de Estudos de Política Econômica - Casa das Garças (IEPE/CdG), além de professora do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Chefiou a área de Pesquisa Macroeconômica Internacional do Banco BBM de 2005 a 2006. Foi economista do Fundo Monetário Internacional em Washington, D.C. entre 2000 e 2005, tendo participado da reestruturação da dívida soberana do Uruguai e escrito diversas notas técnicas sobre o tema. É Ph.D. em Economia pela London School of Economics, com especialização em crises financeiras.

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