Liberalismo e Capitalismo
Antonio Delfim Netto
Publicado no Jornal Valor Econômico –
23/09/14 – p.A2
Um
sentimento de crise permanente nos é transmitido desde o primeiro livro de
história da civilização que enfrentamos. Toda a história do homem é exposta
como a história dos problemas do homem.
Não
se trata de uma narrativa dos problemas do homem com a natureza, da qual faz
parte e da qual se distanciou pela capacidade de pensar-se e de pensá-la como
entidade separada, mas dos problemas do homem com o homem. Ela é sempre a
história do poder: da insuperável tendência permanente de alguns homens de
sujeitarem os outros a sua vontade. São sempre minorias (ou maiorias) que
tentam, pela persuasão ou pela força, quebrar a vontade de maiorias (ou
minorias) e submetê-las à própria vontade.
O
homem começou a viver da agricultura e a instalar-se em pequenas vilas há pouco
mais de 10 mil anos. Tão logo suas necessidades vitais de sobrevivência física
puderam ser razoavelmente atendidas sem a obediência às normas estabelecidas
pelo mais forte, eles passaram a procurar mecanismos de administração de suas
inter-relações.
Sistema
não é o regime "ideal", mas parece melhor do que os outros
Mecanismos
que fossem capazes de assegurar a coesão e a defesa contra as
"vontades" exteriores ao grupo. Que, além disso, impedissem que a
mínima hierarquia necessária a qualquer tipo de sociedade, para lhe dar um
mínimo razoável de funcionalidade e estabilidade, fosse fonte de uso abusivo do
poder por alguns. Ninguém os inventou: eles emergiram da prática da cooperação
adaptativa natural que facilitava a vida do grupo.
Na
longa caminhada em que o homem construiu-se a si mesmo, ele acabou entendendo
que só existe um meio eficaz de controle do poder: a lei que não transcende ao
homem, que não existe fora dele. Ela é produto de uma ética seletiva
conveniente, aceita consensualmente para a comodidade e coesão do grupo. Nesse
sentido, talvez seja a maior manifestação de humanidade do animal-homem, pois
estabelece o desejo de igualdade onde a natureza estabeleceu a hierarquia.
Estabelece o respeito onde a natureza estabeleceu a submissão. Estabelece a
perpetuação onde a natureza estabeleceu a morte.
Ao
abandonar a comodidade que a natureza lhe oferecia, com sua hierarquia natural,
suas regras estritas de sobrevivência e seu processo de seleção, o homem
escolheu um caminho difícil. Desgarrando-se da natureza, verificou que estava
só, tendo que produzir suas próprias normas de comportamento, de acordo com sua
própria conveniência e vontade.
É
por isso que, tendo a partir do século XVI ocupado efetivamente todo o globo
terrestre e apreendido da natureza uma noção de ordem inelutável, que deu
nascimento às ciências físicas, os homens tiveram a esperança de que suas
inter-relações fossem também comandadas por forças externas que garantiriam a
harmonia dos seus interesses. Bastava-lhes, portanto, descobrir as "leis
naturais" dessas inter-relações e obedecê-las para que tudo se acertasse.
Tratava-se
de doce ilusão. Tendo abandonado a natureza, por que essa haveria de
oferecer-lhe um caminho seguro? Em meados do século XIX, com Marx, o homem foi
inexoravelmente forçado a enfrentar essa assustadora verdade. Entretanto, todas
as tentativas de implementação de um empobrecedor marxismo-economicista acabaram
por negá-lo: ou produziram sociedades onde o problema do poder é resolvido com
a eliminação pura e simples do "outro", ou é resolvido por uma cópia
do modelo que o processo de evolução impôs às formigas.
O
homem compreendeu que resolver o problema do poder consiste em encontrar uma
resultante adequada dos dois vetores de comportamento que o separaram do mundo
puramente animal: a busca incessante da igualdade e da liberdade, como valores
próprios da ética que construiu. Mas desde cedo apreendeu também que essa
resultante é difícil de se encontrar, porque aqueles dois valores, depois de um
certo limite, se destroem mutuamente.
Apesar
de todas as dificuldades, o liberalismo político, que obteve sua certidão de
nascimento com a Revolução Inglesa de 1688, deu margem à expansão das
atividades econômicas apoiadas sobre a formação de uma burguesia extremamente
ativa e razoavelmente independente do Estado. Até agora foi a única organização
social capaz de compor de forma razoável e estável aqueles dois vetores.
A combinação do
liberalismo político com o capitalismo não é o fim da história. É um sistema
que continua em evolução empurrado pelo sufrágio universal. Certamente, não é o
regime "ideal", mas parece melhor do que todos os outros. O seu
funcionamento na Europa Ocidental, na Escandinávia e nos Estados Unidos mostrou
que possui uma capacidade quase infinita de continuar a adaptar-se na busca da
sociedade civilizada, que é o objetivo do homem.
A
evolução social e econômica daqueles países mostra claramente que o liberalismo
político é incomparavelmente superior a todos os "inventados" por
cérebros peregrinos, e que o que se tem qualificado de socialismo (quando não
se refere ao "socialismo" daqueles mesmos países) não tem sido mais
do que um capitalismo de Estado, administrado por burocracias extremamente
ineficientes e, em geral, tão corruptas quanto a burguesia. Infelizmente, a
história mostra que a verdade é sempre descoberta tarde demais...
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