“Cota
não resolve problema da educação. Ela cria ilusão”
Entrevista com Eunice Durham*
A
estudiosa afirma que, apesar da propaganda acerca da reserva de vagas, a
esmagadora maioria dos jovens seguirá sem lugar na universidade pública
Em agosto de 2012, a presidente Dilma
Rousseff assinou a chamada lei das cotas, que reserva 50% das vagas de
universidades federais a estudantes oriundos de escolas públicas de ensino
médio. No final daquele ano, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, lançou um
programa de inclusão social para as três universidades públicas paulistas, USP,
Unicamp e Unesp – apontadas nos rankings internacionais como centros de excelência
em pesquisa no Brasil. "Embora a proposta pareça um pouco melhor do que a
lei federal, está longe de ser a solução", diz a antropóloga Eunice
Durham.
Ex-secretária de política educacional do
Ministério da Educação, membro do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da
USP e estudiosa do ensino superior, Eunice acusa a nova proposta de carregar o
mesmo discurso e enganos revelados em 2002, quando foi adotada pela primeira
vez no país o mecanismo de reserva de vagas (por raça, então), na UFRJ. "Tanto
as cotas raciais como as cotas sociais são remendos demagógicos", diz.
"Existe uma grande desigualdade educacional entre pobres e ricos, negros e
brancos. Mas a questão é que isso está sendo combatido no lugar errado. Querem
consertar as desigualdades do Brasil na porta da universidade, sendo que o
problema se origina na educação básica."
Para quem acha que a posição é ideológica, a
professora oferece números. "Mesmo com toda essa propaganda de que a
universidade agora está de portas abertas para os alunos da rede pública, 95%
da população jovem vai seguir fora da universidade pública." Mais efetivo
e justo, defende a antropóloga, seria a criação e manutenção, pelas
universidades públicas, de cursos pré-vestibulares que preparassem os
estudantes da rede pública para o ingresso no vestibular. "Desde que a
universidade chegou ao Brasil, as famílias ricas recorrem a esse tipo de aulas
adicionais para garantir que seus filhos tenham o conhecimento necessário para
passar no vestibular. Por que não oferecer a mesma oportunidade para os
pobres?", indaga a estudiosa. Confira a seguir trechos da entrevista que
ela concedeu ao site de VEJA.
Como docente da USP e membro da comunidade
acadêmica, como a senhora recebeu a notícia de que a universidade deve aderir
ao programa de cotas do estado? Embora pareça um pouco melhor do que a lei
federal, a proposta do governo estadual está longe de ser a solução. A ideia
pode até ser aproveitada, mas precisa ser melhor analisada. Não podemos
implementar um plano assim, sem testar outras alternativas.
Quais os problemas das políticas de cotas?
Tanto as cotas raciais como as cotas sociais são remendos demagógicos. Entendo
que os problemas que elas visam combater são reais. De fato, existe uma grande
desigualdade educacional entre pobres e ricos, negros e brancos. Mas a questão
é que isso está sendo combatido no lugar errado. Querem consertar as
desigualdades do Brasil na porta da universidade, sendo que o problema se
origina na educação básica. Não é o vestibular que discrimina. O vestibular é
talvez o mecanismo mais justo de seleção. Só passa quem tem capacidade de
passar, não há beneficiados. O filho do senador e o filho da doméstica fazem
exatamente a mesma prova. Agora, se os que passam são majoritariamente
provenientes da parte mais rica de população é por culpa do sistema público,
que é de péssima qualidade. Não é o vestibular que é elitista – é o sistema
básico que é desigual.
Hoje, cerca de 80% dos alunos da educação
básica estão matriculados na rede pública. Não é natural desejar que
universidades federais e estaduais atendam também a essa população? A questão
primordial é que as cotas não dão conta de incluir toda essa gente. Posso citar
alguns números: no estado de São Paulo, menos de 30% dos jovens estão
matriculados no ensino superior – há, portanto, pelo menos 70% de excluídos.
Dos 30% incluídos, as universidades públicas atendem apenas 15% do total de
matriculados, isto é, 4,5% dos jovens – menos de 5%. As cotas não mudam esse
cenário porque não criam vagas, elas apenas fazem a redistribuição. Querem
criar um programa para incluir mais negros nesse porcentual de 4,5%, mas isso
em nada vai alterar o nível crucial de exclusão que temos. Eu sou contra cota
racial: ela penaliza outra parte da população que também precisa de estímulos:
os brancos pobres.
As cotas são uma falsa ideia de inclusão, então?
Exatamente. Mesmo com toda essa propaganda de que a universidade agora está de
portas abertas para os alunos da rede pública, 95% da população jovem vai
seguir fora da universidade pública. Por isso as cotas são demagógicas. Elas
não lidam com o problema, elas criam uma ilusão.
E qual é o verdadeiro problema? No Brasil,
existe uma cultura de que ensino superior é sinônimo de universidade. Criou-se
esse mito de que todo mundo precisa ser doutor e que curso técnico
profissionalizante é algo menor, degradante. O país precisa oferecer cursos
diferenciados para populações diferenciadas. Tem gente quem quer aprender sobre
as coisas e tem gente que quer aprender a fazer coisas. Temos que oferecer
escola para todo mundo, ou você acha que todo mundo precisa estudar física
quântica na USP? O Brasil tem que decidir se quer colocar todo mundo na
universidade ou se quer criar um ensino superior que ofereça condições para dar
à maioria da população a condição para continuar os estudos depois do ensino
médio, aprender uma profissão, se inserir no mercado de trabalho e exercer uma
cidadania responsável. Mas você vê alguém discutindo isso? Eu não vejo. Só vejo
um monte de gente querendo sair bem na foto dizendo que vai colocar mais meia
dúzia de estudantes nas universidades federais e estaduais. E achando que com
isso vai resolver o problema da educação no Brasil.
Equacionar esses problemas levaria anos. O
que fazer pela população pobre, majoritária nas escolas públicas, que está no
ensino médio e precisa ser incluída no ensino superior? A solução mais
imediatista que vejo é a criação, por parte das universidades públicas, de
cursos pré-vestibulares de qualidade para alunos de baixa renda empenhados em
ingressar no ensino superior. Alunos das próprias instituições poderiam atuar
junto a professores como tutores e, estudantes que almejam ser professores, por
exemplo, poderiam fazer estágio nesses cursos. Desde que a universidade chegou
ao Brasil, as famílias ricas recorrem a aulas adicionais para garantir que seus
filhos tenham o conhecimento necessário para passar no vestibular. Por que não
oferecer a mesma oportunidade para os pobres? Esse pré-vestibular permitiria
checar quais são as reais dificuldades dos alunos e os métodos mais eficazes
para saná-las, pensando em depois replicá-los para a rede pública de educação
básica.
O programa do governo estadual prevê que os
alunos realizem um curso prévio, de dois anos, antes de ingressar nas
universidades, uma espécie de 'college' que garantiria um diploma de nível
superior. Isso não seria suficiente? O programa prevê apenas que os que forem
selecionados passem pelo curso. Não adianta nada privilegiar meia dúzia de
pobres. É preciso oferecer oportunidade de crescimento a muito mais jovens.
Pelo sistema que eu proponho, mesmo os jovens que não ingressarão na
universidade pública terão a oportunidade de suprir as deficiências que
acumularam ao longo da vida escolar. E estarão assim mais preparados para o
mercado de trabalho.
Mas a senhora considera que os 'colleges'
poderiam ser uma alternativa às universidades no futuro? Eu sou a favor da
criação de ‘colleges’. Seria uma proposta revolucionária para o ensino superior
brasileiro, mas não pode ser um 'college' emendado a um projeto de cotas para a
universidade. Nos Estados Unidos, eles funcionam bem e atendem a mais da metade
da população. Mas, no Brasil, o projeto ainda está muito cru. É preciso
discuti-lo, saber como seria implantado, sua vigência e avaliação. Do jeito que
foi apresentado, me parece apenas a resposta a uma pressão demagógica.
Indicadores internacionais mostram que as
universidades públicas paulistas são a elite do ensino superior brasileiro,
instituições dedicadas ao ensino e à pesquisa. As cotas podem afetar a
qualidade dessas universidades? Eu acredito que sim. Existem algumas pesquisas
que apontam o contrário. Elas, em geral, dizem que alunos cotistas têm
desempenho inclusive superior aos não cotistas. Isso tem a ver com resiliência,
a capacidade do estudante de se adaptar e vencer os obstáculos quando lhe é
dada oportunidade. Mas no momento que essas pesquisas foram realizadas, as
cotas tinham outra dimensão, incluíam um percentual muito menor de alunos.
Agora estamos falando que metade de uma universidade será formada por alunos
oriundos de uma escola de má qualidade. Não há como prever o futuro, mas
acredito que a qualidade de uma instituição não depende apenas de bons
professores, mas também do ingresso de bons alunos.
*
Antropóloga. Fundadora e coordenadora do NUPES - Núcleo de Pesquisas sobre
Ensino Superior da USP. Pesquisadora e membro do Conselho do NUPPS - Núcleo de
Pesquisa de Políticas Públicas da USP. Integrou o Conselho Nacional de
Educação, Câmara de Ensino Superior - 1997 - 2001. Foi presidente da Fundação
CAPES e Secretária Nacional de Educação Superior do Ministério de Educação-
1992. Ex-Secretária Nacional de Política Educacional do Ministério de Educação
- 1995 - 1997. Membro do Conselho Estadual de Educação (2008 - 2012). Autora de
diversos artigos e livros de Antropologia e sobre Ensino Superior
- Entrevista realizada pela Revista Veja em dez/2012
Fonte:
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/cota-nao-resolve-problema-da-educacao-ela-cria-ilusao
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