Análise:
A beleza da Revolução de 1932
Antonio
Penteado Mendonça*
A vantagem de comentar um fato mais de
80 anos depois de ele ter acontecido é que temos acesso a informações mais
amplas, abrangendo todos os lados, o que é completamente diferente de estar no
olho do furacão, no calor da hora, tomando decisões que podem ter consequências
opostas às esperadas.
Com a Revolução de 1932 não é
diferente. Uma coisa era estar lá, no momento em que a população do Estado de
São Paulo se amotinava, atiçada por ameaças que lhe pareciam reais, enfrentando
as dificuldades de relacionamento com o governo federal, a falta de certeza em
relação a Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a falta de armamentos modernos, a
atitude do general Bertoldo Klinger e os compromissos que iniciariam o
movimento armado para depor o presidente Getúlio Vargas.
Outra, muito mais cômoda, é 82 anos
depois analisar as razões que impediram São Paulo de se aproximar da vitória,
ainda que num primeiro momento tendo chances concretas de depor o ditador.
A Revolução de 1930 costuma ser muito
mal explicada nas salas de aula brasileiras. Ainda que tenha sido um movimento
com consequências dramáticas para a história nacional, ela é vendida como a
mobilização do País para derrubar as elites paulistas e mineiras, que dominavam
o governo federal, e para introduzir mudanças na forma da administração do
País. Não é verdade.
A começar pelo fato de que Getúlio
Vargas estava longe de ser o comandante corajoso e disposto a afrontar todos os
riscos para tomar o poder - o que o teria levado a enfrentar as dificuldades e
abrir caminho a baioneta, do Rio Grande ao Rio de Janeiro. A Revolução de 1930
chega até nós como uma revanche contra paulistas e mineiros, o que tem sido
sistematicamente desmentido por estudos modernos a respeito da história do
Brasil naquele período.
Ninguém discute que, se as tropas da
Força Pública Paulista quisessem impedir, a caravana transportando Getúlio
Vargas não teria cruzado o Estado de São Paulo. Elas eram mais bem equipadas
que as demais forças brasileiras, incluído o Exército. Se Getúlio atravessou o
Estado e, mais do que isso, foi recebido por uma multidão que o ovacionou ao
longo do trajeto, foi porque os paulistas também desejavam mudanças na forma da
administração da Nação.
Em vez de respeitar o apoio paulista e
permitir que a população fosse governada por homens da terra, Getúlio Vargas,
assim que se viu vitorioso, entregou São Paulo aos “tenentes”, permitindo que a
Unidade mais desenvolvida da Federação servisse de campo de provas para
experiências político-ideológicas de um grupo de pessoas que desejavam um País
bastante diferente da realidade já alcançada pelo Estado.
A Revolução de 1932 foi a consequência
lógica do embate entre as duas visões completamente antagônicas de modo de vida
e sociedade. Ela teve uma liderança civil, composta pela união quase impensável
entre o Partido Republicano Paulista e o Partido Democrático, mas o que a fez
irreversível foi a ameaça contra os avanços sociais e econômicos do Estado, tão
forte que levou a população a se mobilizar em defesa de seus valores. Daí em
diante, a luta tornou-se inevitável.
Não cabe aqui analisar a série de
equívocos praticados pelos paulistas ao longo do percurso até a deposição das
armas, no início de outubro de 1932. Mas é importante salientar alguns fatos
que mostram a verdadeira beleza do movimento, no qual perto de mil pessoas
deram suas vidas - voluntários e soldados sem qualquer treinamento, lutando em
uma guerra mal comandada, mal planejada, com ações da mais sórdida traição,
praticadas por comandantes despreparados, covardes, descomprometidos com a
causa de São Paulo ou de pleno acordo com o pensamento do governo federal.
Para uma melhor compreensão do quadro,
basta ler a série de livros publicados por ex-combatentes, narrando as ações no
seu setor durante a luta. Para não alongar, vale citar Palmares pelo Avesso, de
Paulo Duarte, e Batalhão 14 de Julho, de Augusto de Souza Queiroz.
Em 1932 mais de 70% da população
brasileira era analfabeta. Se nos dias de hoje, com índices melhores do que
esse, com certeza apenas uma parcela reduzida sabe o que é “Constituição”,
imagine naqueles dias.
Dizer que o paulista largou tudo para
se alistar como voluntário para lutar pela “Constitucionalização do País” é ir
além da real capacidade intelectual do cidadão médio do Estado de São Paulo à
época.
Humilhado pelo governo federal que
tratava o Estado como “terra conquistada”, o paulista desejava recuperar seu
orgulho e sua autonomia, para manter o ritmo de desenvolvimento e a qualidade
de vida, alcançada pelas mudanças econômicas que modernizavam a sociedade, como
consequência da soma da vontade de vencer dos imigrantes com a força
empreendedora da população do Estado.
Para ele a “Constituição”, pregada
pela propaganda em 1932, era isso. Poder prosseguir evoluindo, criando
riquezas, melhorando as condições de vida e bem-estar social, de cabeça erguida
e sem dever nada a ninguém.
Por isso valia a pena morrer. E o
cidadão comum não hesitou. Foi ser soldado, sem treinamento, mal equipado e mal
comandado. O que estava em jogo era o orgulho do seu modo de vida. Se ele se
chamava “Constituição”, muito bem, valia a pena morrer por ela. Operários,
comerciários, comerciantes, bancários, banqueiros, industriais, fazendeiros,
sitiantes, trabalhadores rurais, profissionais liberais, estudantes, mulheres,
meninos, brancos, índios, negros, mulatos, mamelucos, caiçaras, caipiras, gente
da cidade, todos se alistaram, voluntários, dividindo o frio das trincheiras, o
chão das fábricas, as enfermarias dos hospitais de sangue, irmanados na certeza
de que o que haviam conseguido com seu trabalho era bom e era deles e, por
isso, ninguém tinha o direito de interferir no progresso de São Paulo e na
certeza de um futuro melhor.
Futuro que se consolidou em 1934, não
com a Constituição, mas com a criação da Universidade de São Paulo.
Reportagem publicada originalmente na edição impressa do
Estadão, dia 9 de julho de 2014
* Antonio Penteado Mendonça é presidente da Academia
Paulista de Letras (APL)
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