Relatório da OCDE questiona Lei das Cotas e sugere mensalidade em
faculdade pública
Documento da OCDE, organismo
mundial responsável pelo Pisa, critica ação afirmativa para reduzir
desigualdade. Ministro da Educação defende “inclusão de pobres indígenas e
negros” no ensino superior
Não é possível dizer que as
cotas são o melhor caminho para se reduzir disparidades sociais na educação
superior do Brasil, nem está claro que a medida acabe com a raiz do problema. A
afirmação consta no relatório “Investing in Youth: Brazil” (Investir na
Juventude: Brasil), publicado pela Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Segundo a entidade, no lugar de políticas
afirmativas, o governo deveria considerar a cobrança de mensalidades, em
universidades federais, daqueles que puderem pagar, mantendo a gratuidade para
estudantes menos abastados.
Esta é a declaração mais
contundente sobre cotas já feita pela organização, reconhecida mundialmente por
gerar indicadores e pesquisas de mercado e educacionais de excelência, como o
Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês).
A princípio, o estudo teve o
objetivo de abordar o caminho trilhado pelo jovem para ingressar no mercado de
trabalho. Em um capítulo reservado inteiramente a mostrar o panorama da
educação no Brasil, a OCDE afirma que o acesso ao ensino superior de qualidade
por aqui é “extremamente desigual”. A organização não diferencia cotas sociais
de cotas por critérios raciais. Para a organização, nenhuma das duas resolve o
problema.
— Se por um lado as cotas podem
ajudar a elevar a participação das minorias raciais no ensino superior, por
outro elas tratam apenas de um sintoma e não do problema como um todo. Na
realidade, o problema surge muito antes: nos baixíssimos níveis educacionais
das minorias raciais que só têm acesso aos piores serviços de educação que a
rede pública oferece — critica o economista Stijn Broecke, um dos pesquisadores
da OCDE que participaram do relatório.
A lei 12.711, conhecida como
Lei das Cotas, é a principal medida do governo federal para democratizar o
acesso ao ensino superior no país. Segundo ela, universidades e institutos
federais deverão reservar, até 2016, 50% das vagas para alunos oriundos de
escolas públicas. Dentro deste universo, metade será dedicada às minorias
étnicas. Na primeira edição deste ano do Sistema de Seleção Unificada (Sisu),
programa que seleciona estudantes para ingressar em instituições de ensino
superior federais, 43% das mais de 171 mil vagas foram destinadas a cotistas.
O Ministério da Educação (MEC),
obviamente, não concorda com a crítica. O ministro José Henrique Paim defendeu
a política, afirmando que as cotas asseguram vagas aos mais pobres e a minorias
étnicas. Paim lembrou ainda que a gratuidade do ensino superior é uma garantia
prevista na Constituição:
— A Lei das Cotas assegura a
mudança no perfil dos estudantes brasileiros, com a inclusão dos mais pobres,
indígenas e negros. Parece contraditória a afirmação do estudo da OCDE de que a
lei de cotas continuaria a beneficiar pessoas mais abastadas que poderiam pagar
pelos seus estudos. A política de cotas está revertendo essa lógica.
‘Muito a fazer’
A OCDE foi fundada em 1961 por
34 países, para estimular o progresso econômico. Apesar de não ser um membro
titular, o Brasil participa de diversos programas da organização, como o Pisa,
que avalia o desempenho de estudantes de 15 anos de 65 países em matemática,
leitura e ciência. No Pisa 2012, o Brasil ficou na 58ª colocação de uma lista
de 65 economias mundiais.
“Não está claro, porém, que a
Lei das Cotas é a maneira certa de enfrentar disparidades sociais no ensino
superior no Brasil, nem está claro que ela incide sobre o problema certo (…)
Universidades públicas gratuitas e extremamente disputadas são ocupadas
principalmente por estudantes mais ricos, enquanto os mais pobres são obrigados
a pagar altas taxas de matrícula em instituições privadas. Mesmo sob a Lei das
Cotas, 50% das vagas gratuitas em instituições públicas serão tomadas por
estudantes de alto poder aquisitivo, muitos dos quais poderiam ter recursos
para pagar por sua educação universitária”, diz o relatório.
O relatório da OCDE reconhece
as políticas de expansão do ensino superior implementadas pelo Brasil na última
década, mas frisa que ainda “há muito o que fazer”, e bate na tecla da
desigualdade.
A solução de começar a cobrar
taxas de matrículas em universidades federais para classes mais abastadas,
segundo Broecke, seria justificada pela forte desigualdade social no acesso ao
ensino superior, onde alunos de famílias mais ricas ficam com as melhores vagas
em instituições que, em tese, são públicas. Para ele, o sistema deixa
injustamente os estudantes de menor poder aquisitivo com o fardo de pagar pelos
estudos em faculdades privadas.
— O sistema de ensino superior
no Brasil é muito pequeno e extremamente desigual. A expansão das universidades
será necessária para aumentar a participação das famílias mais pobres, e isso
vai exigir uma mudança no modelo atual público-privado e na forma como ele é
financiado — diz.
Para Marcelo Paixão, professor
de Economia da UFRJ e coordenador Laboratório de Análises Econômicas,
Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), o estudo
confunde o uso dos recursos públicos na educação superior e ações afirmativas:
— As assimetrias no acesso ao
sistema universitário não decorrem apenas das diferenças nas capacidades de
pagamentos dos estudantes de brancos e negros, mas também a partir de
instrumentos de seleção que acabam prorrogando indefinidamente as desigualdades
em termos de acesso às instituições de maior prestígio.
Uerj
Mesmo sem ser citada
nominalmente, a Universidade do Estado do Rio (Uerj) aparece no relatório da
OCDE como uma das primeiras a adotar cotas em seu processo seletivo. Desde
2004, quando começou a reserva das vagas, a universidade já recebeu 18.270
cotistas, sendo 8.021 deles apenas por cotas raciais.
O calouro de História Bruno
Alves é um deles. Mesmo tendo estudado em escola pública, Bruno optou por
concorrer pelo critério de cor por uma questão íntima. Ele concorda com partes
do relatório da OCDE, mas defende as políticas afirmativas. Com uma bolsa
mensal de R$ 400 para os estudos, dada pela Uerj aos cotistas, Bruno argumenta
que o desempenho dos alunos favorecidos por ações afirmativas não deixa a
desejar em relação aos demais estudantes:
— Se a educação básica fosse de
qualidade, realmente não haveria a necessidade de cotas. Mas como o Estado
sofre com o sucateamento e é um instrumento da classe dominante, pelo menos a
política afirmativa garante o acesso aos menos favorecidos. Existe sim uma
defasagem muito grande de estudos, mas os cotistas demonstram uma capacidade
muito grande de superar as dificuldades.
Já a aluna do 1º período de
Nutrição Sarah de França Barradas expressa algumas reservas às políticas
afirmativas. Aluna de escola pública, Sarah foi aprovada por cotas sociais,
onde só a renda é levada em conta. Segundo ela, critérios baseados em etnia ou
cor apenas exacerbam a desigualdade:
— Eu poderia muito bem
concorrer por cotas raciais, mas não quis por questão de princípios. Não é
porque a pessoa é negra que ela é menos inteligente do que as outras. Isso não
é justo.
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