segunda-feira, 2 de junho de 2014

Cotas reforçam a discriminação?


Relatório da OCDE questiona Lei das Cotas e sugere mensalidade em faculdade pública

Documento da OCDE, organismo mundial responsável pelo Pisa, critica ação afirmativa para reduzir desigualdade. Ministro da Educação defende “inclusão de pobres indígenas e negros” no ensino superior
Não é possível dizer que as cotas são o melhor caminho para se reduzir disparidades sociais na educação superior do Brasil, nem está claro que a medida acabe com a raiz do problema. A afirmação consta no relatório “Investing in Youth: Brazil” (Investir na Juventude: Brasil), publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Segundo a entidade, no lugar de políticas afirmativas, o governo deveria considerar a cobrança de mensalidades, em universidades federais, daqueles que puderem pagar, mantendo a gratuidade para estudantes menos abastados.
Esta é a declaração mais contundente sobre cotas já feita pela organização, reconhecida mundialmente por gerar indicadores e pesquisas de mercado e educacionais de excelência, como o Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês).
A princípio, o estudo teve o objetivo de abordar o caminho trilhado pelo jovem para ingressar no mercado de trabalho. Em um capítulo reservado inteiramente a mostrar o panorama da educação no Brasil, a OCDE afirma que o acesso ao ensino superior de qualidade por aqui é “extremamente desigual”. A organização não diferencia cotas sociais de cotas por critérios raciais. Para a organização, nenhuma das duas resolve o problema.
— Se por um lado as cotas podem ajudar a elevar a participação das minorias raciais no ensino superior, por outro elas tratam apenas de um sintoma e não do problema como um todo. Na realidade, o problema surge muito antes: nos baixíssimos níveis educacionais das minorias raciais que só têm acesso aos piores serviços de educação que a rede pública oferece — critica o economista Stijn Broecke, um dos pesquisadores da OCDE que participaram do relatório.
A lei 12.711, conhecida como Lei das Cotas, é a principal medida do governo federal para democratizar o acesso ao ensino superior no país. Segundo ela, universidades e institutos federais deverão reservar, até 2016, 50% das vagas para alunos oriundos de escolas públicas. Dentro deste universo, metade será dedicada às minorias étnicas. Na primeira edição deste ano do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), programa que seleciona estudantes para ingressar em instituições de ensino superior federais, 43% das mais de 171 mil vagas foram destinadas a cotistas.
O Ministério da Educação (MEC), obviamente, não concorda com a crítica. O ministro José Henrique Paim defendeu a política, afirmando que as cotas asseguram vagas aos mais pobres e a minorias étnicas. Paim lembrou ainda que a gratuidade do ensino superior é uma garantia prevista na Constituição:
— A Lei das Cotas assegura a mudança no perfil dos estudantes brasileiros, com a inclusão dos mais pobres, indígenas e negros. Parece contraditória a afirmação do estudo da OCDE de que a lei de cotas continuaria a beneficiar pessoas mais abastadas que poderiam pagar pelos seus estudos. A política de cotas está revertendo essa lógica.
‘Muito a fazer’
A OCDE foi fundada em 1961 por 34 países, para estimular o progresso econômico. Apesar de não ser um membro titular, o Brasil participa de diversos programas da organização, como o Pisa, que avalia o desempenho de estudantes de 15 anos de 65 países em matemática, leitura e ciência. No Pisa 2012, o Brasil ficou na 58ª colocação de uma lista de 65 economias mundiais.
“Não está claro, porém, que a Lei das Cotas é a maneira certa de enfrentar disparidades sociais no ensino superior no Brasil, nem está claro que ela incide sobre o problema certo (…) Universidades públicas gratuitas e extremamente disputadas são ocupadas principalmente por estudantes mais ricos, enquanto os mais pobres são obrigados a pagar altas taxas de matrícula em instituições privadas. Mesmo sob a Lei das Cotas, 50% das vagas gratuitas em instituições públicas serão tomadas por estudantes de alto poder aquisitivo, muitos dos quais poderiam ter recursos para pagar por sua educação universitária”, diz o relatório.
O relatório da OCDE reconhece as políticas de expansão do ensino superior implementadas pelo Brasil na última década, mas frisa que ainda “há muito o que fazer”, e bate na tecla da desigualdade.
A solução de começar a cobrar taxas de matrículas em universidades federais para classes mais abastadas, segundo Broecke, seria justificada pela forte desigualdade social no acesso ao ensino superior, onde alunos de famílias mais ricas ficam com as melhores vagas em instituições que, em tese, são públicas. Para ele, o sistema deixa injustamente os estudantes de menor poder aquisitivo com o fardo de pagar pelos estudos em faculdades privadas.
— O sistema de ensino superior no Brasil é muito pequeno e extremamente desigual. A expansão das universidades será necessária para aumentar a participação das famílias mais pobres, e isso vai exigir uma mudança no modelo atual público-privado e na forma como ele é financiado — diz.
Para Marcelo Paixão, professor de Economia da UFRJ e coordenador Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), o estudo confunde o uso dos recursos públicos na educação superior e ações afirmativas:
— As assimetrias no acesso ao sistema universitário não decorrem apenas das diferenças nas capacidades de pagamentos dos estudantes de brancos e negros, mas também a partir de instrumentos de seleção que acabam prorrogando indefinidamente as desigualdades em termos de acesso às instituições de maior prestígio.
Uerj
Mesmo sem ser citada nominalmente, a Universidade do Estado do Rio (Uerj) aparece no relatório da OCDE como uma das primeiras a adotar cotas em seu processo seletivo. Desde 2004, quando começou a reserva das vagas, a universidade já recebeu 18.270 cotistas, sendo 8.021 deles apenas por cotas raciais.
O calouro de História Bruno Alves é um deles. Mesmo tendo estudado em escola pública, Bruno optou por concorrer pelo critério de cor por uma questão íntima. Ele concorda com partes do relatório da OCDE, mas defende as políticas afirmativas. Com uma bolsa mensal de R$ 400 para os estudos, dada pela Uerj aos cotistas, Bruno argumenta que o desempenho dos alunos favorecidos por ações afirmativas não deixa a desejar em relação aos demais estudantes:
— Se a educação básica fosse de qualidade, realmente não haveria a necessidade de cotas. Mas como o Estado sofre com o sucateamento e é um instrumento da classe dominante, pelo menos a política afirmativa garante o acesso aos menos favorecidos. Existe sim uma defasagem muito grande de estudos, mas os cotistas demonstram uma capacidade muito grande de superar as dificuldades.
Já a aluna do 1º período de Nutrição Sarah de França Barradas expressa algumas reservas às políticas afirmativas. Aluna de escola pública, Sarah foi aprovada por cotas sociais, onde só a renda é levada em conta. Segundo ela, critérios baseados em etnia ou cor apenas exacerbam a desigualdade:
— Eu poderia muito bem concorrer por cotas raciais, mas não quis por questão de princípios. Não é porque a pessoa é negra que ela é menos inteligente do que as outras. Isso não é justo.




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