O baixo calão e o 'ódio ao PT'
José Nêumanne
Como tudo o que diz respeito ao
futebol brasileiro, o grotesco episódio dos insultos à presidente Dilma
Rousseff no Itaquerão, na partida de abertura da Copa do Mundo da Fifa de 2014
no Brasil, tem algo de malandragem e algo de paixão cega. Pois neste "país
do futebol" tudo vira Fla-Flu. Como tudo o que concerne à política
nacional, a grosseria é interpretada e utilizada como convém ao freguês, com
excessos de oportunismo cínico e deslavada hipocrisia. Dar-lhe a devida medida
depende apenas de respeitar os fatos.
Para começo de conversa, não foi o
estádio que invadiu o palácio, mas o palácio que ocupou o estádio. Há sete anos
Luiz Inácio Lula da Silva, que pode ser tudo na vida menos bobo, comemorou como
feito histórico e obra de seu governo a escolha do País para sediar o mais
importante torneio da mais popular atividade esportiva e de entretenimento do
planeta. O Mundial de Futebol é organizado e explorado comercialmente pela
Fifa, entidade global que não pode ser considerada, nem pelos mais néscios nem
pelos maiores adoradores do esporte dado como bretão, um claustro de carmelitas
descalças. O noticiário produzido em torno de suas atividades, entre as quais a
escolha dos locais para sediarem suas biliardárias disputas, é mais assunto
para notícia de polícia do que para ser impresso em breviários e edificantes
biografias de santo. Seu presidente, o suíço Joseph Blatter, disputa mais uma
reeleição sob suspeita de várias falcatruas.
Trata-se de um negócio privado em que
se emprega muito dinheiro e se ganha muito mais em direitos de transmissão pela
TV e publicidade do que em ingressos para os espetáculos nas chamadas arenas,
cujas rendas movimentam apenas uma ínfima fração de seus emolumentos. É
duvidoso se os países escolhidos para sede herdam um "legado" à
altura dos dispêndios feitos para a montagem do circo gigantesco, mas não
restam dúvidas de que os resultados em publicidade dos que se envolvem com o
negócio são fabulosos. E aí repousava o olho gordo de Lula.
A ilusão de que a paixão popular
reverte sempre em profusão de votos encanta os políticos brasileiros desde
priscas eras. Nunca se constatou que essa mágica resulte em algo efetivo, mas os
resultados positivos nas urnas de alguns astros do espetáculo ainda inspiram as
ambições de gestores públicos ou políticos cegos a ponto de não perceberem
óbvios exemplos históricos. Fala-se muito da derrota do Brasil para o Uruguai
no Maracanã em 1950, mas poucos se lembram dos políticos que festejaram o
título na concentração da seleção no campo do Vasco, em São Januário, à véspera
da final. Como ratos num navio naufragado, foram os primeiros a fugir após o
fiasco.
Os políticos têm tanta sede a matar por
perto dos potes do poder que perdem os limites. Já se calcula em R$ 35 bilhões
o dispêndio público no Brasil para armar o circo na "Copa das Copas".
Do ex-prefeito paulistano Gilberto Kassab à presidente Dilma Rousseff, passando
pelo tucano Geraldo Alckmin e pelo petista Lula, não houve governante que não
garantisse que para um evento em que somente empresas privadas auferem polpudos
lucros o gasto público seria zero.
Agora Lula e seus devotos acusam a
"elite branca", que pagou ingressos caríssimos para frequentar as
arenas na Copa, de falta de educação e de não saber tratar os outros. Fala como
se tivesse exigido da Fifa a contrapartida de que seu eleitorado de gente pobre
tivesse direito a entrada gratuita para ver os jogos, de vez que não usufrui o "padrão
Fifa" nos hospitais desaparelhados nem nas escolas em ruínas com poucas
vagas disponíveis para seus milhões de filhos descamisados. Ao contrário, a
Fifa exigiu tudo e levou tudo e ninguém pensou em baixar os preços dos
ingressos para permitir que os beneficiários do Bolsa Família pudessem aplaudir
Lula e Dilma na abertura do evento. E Lula não justificou sua ausência em
Itaquera para ver o jogo in loco.
Como Renato Maurício do Prado
constatou em sua coluna no Globo, a expressão chula usada contra a presidente
no Itaquerão não é useira e vezeira em comícios ou plenários, mas corriqueira
em estádios. Torcidas a empregam contra rivais ou árbitros num festival de
cafajestice que destes afasta pessoas recatadas que não têm por hábito usar
palavrões à mesa do jantar em casa ou no escritório. Consta que a vítima dos
insultos na abertura da Copa não recorre a expressões cochichadas em missas
para repreender seus subordinados. Mas isso não é motivo para que ela seja alvo
desse baixo calão.
Apesar de já ter contado que torceu
pelo Atlético no Mineirão numa época em que o estádio ainda não havia sido
construído, Sua Excelência não parece ter intimidade com a cafajestice que
impera na atividade futebolística no gramado entre jogadores, na torcida entre
torcedores e no convívio pouco amistoso de dirigentes de paixão desenfreada e
boca suja. As feministas que atribuíram o xingamento ao machismo tampouco têm
intimidade com a linguagem destemperada de nossa "pátria em
chuteiras" (e não "de chuteiras", por amor a Nelson Rodrigues!).
Pode ser que tenham alguma razão os
que reclamam dos insultos à presidente pelo desrespeito ao cargo que ela ocupa.
Teriam toda a razão se Dilma se tivesse comportado depois da posse como a
presidente de todos os brasileiros, entre os quais os que não votaram nela, e
não como chefe de uma facção política ou ideológica, dividindo o país que
governa em "nós, os de boa-fé", e "eles, os
mal-intencionados".
Mas esse Fla-Flu começou quando, ao
constatar que o tucano José Serra tinha sido majoritário nas regiões mais ricas
e ele o fora nas mais pobres, Lula declarou guerra a quem se opusesse a seu
projeto "socialista". Agora, na convenção do PT paulista, pregou uma
catilinária contra o "ódio ao PT". Foi traído pela memória sempre falha:
ele e a sucessora é que tornaram seu partido "o" agente, e não a
vítima preferencial do ódio entre as classes.
Fonte: OESP
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