Karl Barth combateu a ideologização do cristianismo e o comunismo teológico
Pedro
Henrique Alves
Filho
de Fritz Barth e Anna Sartorius, desde cedo esteve envolvido no debate
teológico e filosófico devido às atuações de seu pai como clérigo, professor de
Novo Testamento e Igreja Primitiva. Não há detalhes precisos sobre como passou
os seus primeiros anos de vida, certo é, todavia, que cresceu em Berna, num
ambiente culto e tradicional, com seus pais constantemente debatendo filosofia
e teologia no ambiente familiar, tendo o livre arbítrio ‒ uma causa primeira
para os calvinistas ‒ sempre como uma questão a ser analisada e reanalisada
após o café da manhã.
Estudou
nas universidades de Berna, Berlim, Tübingen e Marburg, de 1911 a 1921 serviu
como professor de teologia e pastor na aldeia de Safenwil, numa região
conhecida como Cantão de Aargau, entre Basileia e Zurique. Em 1913, casou-se
com Nelly Hoffmann, violinista de raro talento e uma erudita modesta em seu
lar. O casal deu à luz a cinco filhos, uma menina e quatro meninos.
A
atuação de Barth nos anos de pastoreio o marcaria de maneira profunda,
principalmente porque notaria a olho nu o claro estrago que a teologia liberal
vinha causando na crença e nas ideias populares dos seus fiéis. Sobre o tema
ele poderia discorrer com propriedade, pois foi formado intelectualmente por
liberais; em Berlim participou dos colóquios de Adolf von Harnack e teve como
professor ninguém menos que Wilhelm Herrmann, um dos mais estimados teólogos
liberais de seus dias. Além disso, ainda na casa de seus pais, ele havia
estudado as influências filosóficas do iluminismo sobre esses autores e como
eles tendiam a uma leitura marxista de Hegel, sendo este outro forte aspecto
que o afastou da teologia liberal alemã, depois de seus anos de estudos
pós-universidade.
Essa
teologia liberal alemã, após 1920, acabaria abraçando conscientemente o
socialismo alemão, tanto como uma resposta ao nazismo como por convicção
ideológica. Karl Barth negaria veementemente tanto o nazismo quanto o
comunismo. Acreditava que a teologia não se faz no método filosófico de
verdades políticas, e é justamente aqui que ele se afasta categoricamente de
Paul Tillich, teólogo influenciado pelo marxismo, que acreditava que a teologia
estava subordinada às inquirições e métodos da filosofia, que a leitura
cultural das verdades bíblicas antecedia a leitura espiritual.
Não à
toa compôs a famosa Declaração de Barmen, texto em que o teólogo insistia que
uma subordinação clerical e eclesiástica ao Estado ‒ naquele contexto o Estado
nazista ‒ e às ideologias modernas seria uma traição fatal ao Evangelho e a
Cristo. Aliado à Declaração, outro texto seu, Nein! Antwort an Emil Brunner
[em tradução livre: Não! A teologia natural], o fez conhecido em todo mundo
protestante norte-americano e o maculou politicamente na Alemanha, fazendo com
que saísse fugido do país em 1935.
Uma teologia nem
liberal e nem tradicional
No
entanto, como parece, foi a sua atuação como pastor e seus estudos que o
levaram a se decidir por não adotar os pressupostos liberais em sua teologia
autoral, o que fazia dele uma terceira via mais segura de protestantismo para
aqueles que recusaram o nazismo e o comunismo como vias de leitura religiosa.
Para Barth, tanto os pastores que abraçaram o nazismo, com aqueles que adulavam
o comunismo, eram em essência um erro a ser extirpado do debate teológico,
pois, sendo Deus o totalmente outro, a teologia não é uma ciência pautada nas
bulas filosóficas e políticas de grupos de influência.
Sua
teologia começa a se delinear em um processo de desintoxicação da teologia
liberal; experiências do pastoreio de 1911 a 1921, e a partir de encontros que
teve, especialmente, com Christoph Blumhardt, um teólogo luterano, de linha
liberal, mas que havia feito pregações sobre a ressureição de Cristo e a
centralidade da teologia nos escritos bíblicos que marcaram profundamente
Barth. A partir dessa influência, ele inicia dois movimentos de retorno
importantes.
O
primeiro é o retorno quase que extremista ao texto bíblico, a ponto de chegar a
momentaneamente abdicar de outros estudos paralelos; e o segundo, o retorno à
pregação do evangelho de forma apaixonada e militante, o que gestaria um de
seus livros mais belos e gratificantes de se ler: Palavra de Deus e Palavra do
Homem ‒ ele terminará sua vida como pregador, mais do que como teólogo. Muitos
acreditam que até esse momento não há uma teologia genuína em Barth,
principalmente aquela que depois faria dele um teólogo admirado por homens
como Thomas F. Torrance e Rudolf Karl Bultmann. A tese, no entanto, não é
válida: em suas pregações já se enxerga o cerne de sua teologia, isto é, a
separação completa do divino e da capacidade humana de compreensão desse
divino, aquilo que ele chamaria de “totalmente outro”.
O totalmente
outro
Em A
Carta aos Romanos, texto de comentários ao livro bíblico homônimo, Barth se
estabeleceu como um teólogo original, reformista e uma verdadeira terceira via
entre o tradicionalismo luterano alemão e a teologia liberal. Iniciada em 1916,
enquanto atuava como pastor, sua primeira edição foi finalizada em 1918 e
lançada no ano seguinte. No entanto, como pontuou logo que a obra foi lançada,
ele não gostou do resultado final e, assim, decidiu revisar profundamente o
texto entre 1919 e 1921. A obra foi relançada, em sua segunda edição, em
1922. Rapidamente essa segunda edição ganhou força em toda a Europa, sendo
adotada até mesmo em alguns seminários católicos. Daí a brincadeira de que
Barth seria o protestante mais amado pelos católicos.
Na
obra, Barth argumenta que o Cristo morto na cruz e o Cristo ressurreto são
completamente outro na percepção intelectual humana. Assim sendo, é impossível
conceber a grandeza do Cristo em comparação com culturas, posses e métodos
científicos humanos, Deus é imensurável em sua capacidade e análise. O livro
serviu como fundamentação teológica para o desprendimento da leitura bíblica
ante os movimentos e embates políticos da época. Fato é que parecia que não se
podia ler um salmo sem correlacioná-lo às ideologias e debates políticos
do momento, fazendo assim Tillich soar como o dono da razão.
Barth
tenta resgatar o centralismo da fé cristã na revelação, e a teologia como fruto
da reflexão teológica a partir dessa revelação, e não de instrumentos
filosóficos e outros mais. A repercussão das ideias de Barth em A Carta aos
Romanos o levou a ser convidado a lecionar na prestigiada Universidade de
Göttingen, em 1921. Mais tarde, ele seria nomeado também para as universidades
de Münster, em 1925, e Bonn, em 1930. Lá em Göttingen, para complementar sua
nascente teologia, ele se volta aos escolásticos protestantes e aos Padres da
Igreja ‒ patrística.
Seu Die
protestantische Theologie im 19 [Teologia Protestante no Século XIX] trata
de um prenúncio de sua obra mais complexa, Dogmática Eclesiástica [com edição
brasileira, sob uma tradução aquém do que se esperava]. Em 1927, escreveu uma
tentativa de epistemologia teológica própria em Die Lehre vom Worte Gottes;
Prolegomena zur christlichen Dogmatik [A Doutrina da Palavra de Deus:
Prolegômenos à Dogmática da Igreja]. Na obra, Barth tenta estabelecer como
invariáveis certas interpretações da revelação, tal como a verdade do Espírito
Santo, a Trindade Santa e a Encarnação de Cristo. No entanto, não estando
satisfeito com seu método teológico, em 1931 ele recorre ao amigo Heinrich
Scholz, filósofo da ciência, para ajudá-lo na composição dos seus estudos
sobre Santo Anselmo ‒ os quais depois seriam impressos sob o título de Fides
quaerens intellectum [Fé em busca de entendimento].
Foi
somente em 1932 que lançou sua Dogmática Eclesiástica, onde estabelece as
formas gerais de sua teologia, e se apresenta, por fim, como um teólogo de fato
independente. Foi nessa obra que ele arregimentou como pressuposto de sua
teologia aquilo que praticou em A Carta aos Romanos: a teologia dialética. Tal
doutrina basicamente estabelece que a revelação une elementos que tendem a naturalmente
se afastar: Deus e o homem, revelação e história, graça e pecador, eternidade e
tempo, fazendo com que somente a partir da revelação evangélica a fé cristã se
torne minimamente compreensível e praticável ao homem racional. Cabe pontuar,
também, que aqui obviamente se encontra como base a visão hegeliana de
dialética do espírito: posição > negação > síntese.
A crítica
católica
Uma
crítica católica às ideias de Barth seria que, sob esse fundamentalismo bíblico
e sua constante recusa em aceitar os raciocínios filosóficos para aclarar
princípios teológicos, a teologia dele se transformou em um laicismo prático.
Se Deus é totalmente outro, se a ele não podemos correlacionar os produtos da
razão e da cultura humana, por qual motivo Deus deveria influenciar na
história, nas escolhas, nas tradições, nas leis, em suma, na condução
civilizacional? Se o Deus revelado é inteiramente outro, o agnosticismo seria a
religião mais adequada ao Deus de Barth. A análise católica do pensamento de
Barth é realmente cortante, ainda que pareça superficial num primeiro instante,
pois captura o cerne do pensamento do suíço e elabora uma crítica difícil de
ser totalmente rebatida.
Ainda
que não seja o que Barth pensou quando teorizou sua teologia autônoma, de fato
a crítica católica parecia apresentar um ponto espinhoso para o teólogo, pois
ele passa os finais de seus dias remendando e reanalisando sua teologia em
vários aspectos. Para alguns, ele conseguiu desfazer os nós duros da crítica
romana, para outros, não.
A teologia
católica, que desde cedo se apoiou na filosofia grega, de Agostinho a Santo
Tomás de Aquino, e posteriormente na revisão escolástica e renascentista, não
poderia se apoiar em Barth, dono de uma teologia “sola scriptura”, para fazer
suas considerações mais profundas. A Encíclica Fides et ratio [Fé e
razão] de 14 de outubro de 1998, de João Paulo II, apenas reafirma tal postura
da Igreja Católica e afasta sua teologia de quaisquer solas tipicamente
luteranas.
Mas
com certeza a crítica teológica central de Barth e de Joseph Ratzinger, por
vezes, andaram juntas e pareciam se completar. Ambos condenaram a ideologização
do cristianismo, ambos foram favoráveis à emancipação eclesiástica ante ao
Estado totalitário, ambos condenaram doutrinalmente a releitura bíblica feita
pelos adeptos do comunismo teológico. Não à toa Ratzinger é considerado o maior
teólogo católico da contemporaneidade, conseguindo estabelecer um elo entre a
modernidade e a teologia tradicional do catolicismo; e Barth é considerado o maior
teólogo protestante da modernidade, conseguindo restabelecer a liberdade cristã
ante a utilização da revelação para fins políticos, e dando aos seus adeptos
uma plataforma teológica sólida de reflexão sobre Deus.
Repercussão e últimos
dias
Após a
Segunda Guerra Mundial, Barth se dedicou a formular mais profundamente sua
teologia. Em 1947 publicou seu curso em Bonn, Dogmatik im Grundriss
[Dogmática um esboço], livro preciso para compreender as revisões teológicas
feitas por ele após o amadurecimento de suas ideias e as ditas “críticas
católicas”. Nessa altura, seu prestígio acadêmico e popular era enorme.
Ele foi convidado a palestrar, por exemplo, no Conselho Mundial das Igrejas em
Amsterdã, em 1962. No mesmo ano, por ocasião da publicação de sua obra Einführung
in die evangelische Theologie [Teologia Evangélica: Uma Introdução] foi
convidado pelas universidades de Princeton, Nova Jersey e Chicago. Conheceu
Roma após o Concílio Vaticano II e escreveu, com extremo bom humor e
cordialidade, sobre a ocasião. Ao todo, publicou 17 livros, sem contar os
inúmeros artigos e anotações.
No
final de sua vida, costumava fazer visitas periódicas à prisão da Basileia,
demonstrando um forte espírito evangelista de seus tempos de pastor. Morreu
nessa mesma terra, em 10 de dezembro de 1968, aos 85 anos.
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