Verdades sobre a
farinata
Maristela Basso*
Texto pulicado no
jornal O Estado de S.Paulo - 20 Outubro 2017 | 06h00
Desde
a aprovação da Lei Municipal nº 16.704, de 6 de outubro de 2017, que estabelece
as diretrizes para a Política Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da
Função Social dos Alimentos (PMEFSA), de iniciativa do vereador Natalini (PV),
e outros e, especialmente, depois que, como base nesse novo diploma legal, João
Dória anunciou que pretende incluir a ‘farinata’ na merenda escolar, tem sido
constrangedor assistir ao duelo, sem misericórdia, contra o prefeito,
capitaneado por críticos sem nenhum conhecimento técnico e científico sobre o
tema.
E,
o pior de tudo, cujo único objetivo é a desconstrução de um projeto de governo,
que procura dar impulso a uma alternativa de combate à fome que implica também
solução econômica, ambiental e social para o desperdício de alimentos – no
Brasil e no mundo.
A
‘farinata’ não é invenção de João Dória. Faz parte de uma campanha global de
combate à fome que dura há décadas.
Segundo
a FAO – Organização das Nações Unidas Para a Agricultura e Alimentação, 1/3 dos
alimentos, hoje, no mundo são desperdiçados por ano, o que equivale a cerca de
U$750 bilhões da economia global. Ademais, um bilhão de pessoas padecem pela
fome.
A
‘farinata’, expressão empregada, vulgarmente, para designar o resultado final
de um composto alimentício, na verdade é um processo tecnológico inovador no
mundo, desenvolvido por um grupo de pesquisadores e cientistas, multidisciplinares
brasileiros, de várias universidades, cuja patente será qualificada como
humanitária.
A
‘farinata’ é uma nutrição de emergência e não substitui o alimento tradicional
– se e quando houver, pode também se agregar àquela comida existente.
Por
outro lado, é uma solução efetiva para o desperdício de alimentos e o combate à
desnutrição, pois qualquer ação de doação de alimentos não conseguirá
interromper o processo de deterioração dos mantimentos, sendo esta a principal
razão que impede que os alimentos sejam doados em maior quantidade.
Também,
elimina impactos ambientais decorrentes do descarte de alimentos e suas
embalagens não comercializados, atendendo à Política Nacional de Resíduos
Sólidos.
Ainda,
reduz os custos privados associados ao descarte de alimentos e embalagens,
evita desperdícios de recursos naturais, água, energia etc., aplicados na
produção de alimentos, reduz custos públicos, na medida em que implica nutrição
gratuita às populações em situação de insegurança alimentar (orfanatos,
creches, presídios, albergues etc.).
Na
perspectiva da cooperação internacional, a ‘farinata’ pode ser exportada por
razões humanitárias com segurança para situações de catástrofes: não precisa
ser cozida, fervida, misturada com água, portanto, pode ser consumida em
situação de muita precariedade – terremotos, maremotos, desastres naturais, com
benefícios colaterais para a saúde na medida em que são compostos alimentícios
seguros, ricos em substâncias importantes para a saúde.
Essa
não é a solução para a fome no mundo. É apenas uma alternativa, que foi
premiada durante a Rio+20 pela “ICC – International Chamber of Commerce como
Benckmarking of Green Economy” e selecionada pela FAO/Roma para ser apresentada
para um quórum de 172 países – no dia mundial de diretos humanos, com
lançamento simultâneo da Campanha Global de Combate a Fome, pelo Papa
Francisco, por indicação de Dom Odilo Scherer, Cardeal Arcebispo de São Paulo.
Conta também com o reconhecimento e apoio da “New York Academy of Sciences” e dos
“Scientists Without Border”, em parceria com os Instituto Bill Clinton e
Melinda Gates.
Há
outros projetos de combate a fome no mundo. A “farinata” não é o único.
O
Projeto Golden Rice nasceu na década de 1980 com o desenvolvimento de sementes
de arroz geneticamente modificadas, enriquecidas com vitamina A, que garantem
uma melhor nutrição para aqueles que sofrem com o problema da fome crônica, em
especial crianças e mulheres. O grão é claramente distinguível pela sua cor
amarelada, resultado do acúmulo do betacaroteno no endosperma da semente.
Os
idealizadores do projeto Golden Rice, que desenvolveram a tecnologia para se
introduzir o betacaroteno no arroz com uma mudança mínima de transgenes,
enfrentaram uma longa batalha e terríveis críticas para que o arroz enriquecido
pudesse ser disponibilizado gratuitamente à população que sofre com o problema
da fome e subnutrição, em especial crianças cuja visão e sistema imunológico
são muito afetados pela deficiência da referida vitamina.
Em
Moçambique, é possível verificar o sucesso de outro projeto de nutrição pela
batata doce de polpa alaranjada, capitaneado pelo Centro Internacional da
Batata para o Desenvolvimento, cuja sede se encontra no Peru. O tubérculo de
polpa alaranjada – rico em vitamina A, importante vitamina cuja falta ocasiona
a cegueira – foi introduzido em Moçambique em 1997, vindo dos Estados Unidos,
do Quênia e do Peru.
A
introdução é relevante, pois, anteriormente, o continente africano possuía
apenas a variedade de batata doce de polpa branca, a qual não contém a mesma
quantidade de vitamina A que sua variante alaranjada.
O
projeto foi apoiado por diversas organizações não-governamentais, como a
Fundação Hellen Keller International. Tendo sofrido inicialmente com
adversidades de origem natural para o cultivo em Moçambique, tais como
enchentes e secas, os agricultores buscaram o melhoramento genético da batata
doce de polpa alaranjada junto à Fundação Rockefeller, produzindo, a partir de
então, sementes resistentes à seca.
O
projeto que deu origem ao Golden Rice, que apresenta grandes taxas de sucesso,
foi, certamente, muito mais caro do que a iniciativa do prefeito João Dória,
que não envolve o licenciamento de patentes ou a produção de alimentos
geneticamente modificados.
Da
mesma maneira, não exige a introdução de um novo alimento no país, como ocorreu
no caso da batata doce de polpa alaranjada.
O
prefeito paulista propõe uma solução de baixo custo para solucionar de modo
imediato o problema da fome e da subnutrição, o que poderia ser estimulado em
outras capitais do Brasil, aplaudido e cumprimentado por ser um projeto
nacional que trará benefícios mundiais.
A
lição que tiramos desse episódio, que deixou ecos de críticas equivocadas, em
homenagem aos princípios da razão e do bom senso, é que o mais adequado é
evitar as paixões, as ideologias, os preconceitos e as precipitações retóricas.
Os
direitos humanos decorrem de um consenso amplamente aceito pela comunidade
internacional e não são ditados por este ou aquele grupo de interesses locais.
*Professora
de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da USP. Advogada –
Sócia de Nelson Wilians & Advogados Associados
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