A
FARINHA DO PREFEITO*
Helio Schwartsman
Pegue
comida quase estragada, moa-a até compor um farelo em que todos os elementos se
tornem irreconhecíveis e dê para os pobres. Com essa descrição, acho que até a
mulher do prefeito João Doria ficaria contra o composto alimentar que o alcaide
pretende distribuir a famílias em dificuldades econômicas em São Paulo. Resta
saber se essa é mesmo a melhor descrição.
Humanos
gostamos de pensar as questões que nos são apresentadas em termos abstratos e
recorrendo a tipologias essencialistas, nas quais expressões como "estragado",
"comida irreconhecível" e "para os pobres" tendem a se
sobressair, praticamente definindo o juízo de valor que extrairemos. Muitas
vezes, essa abordagem purista é válida, mas nem sempre.
Especialmente
quando falamos de políticas públicas, é preciso considerar o contexto e as
alternativas. Para que famílias a tal da farinha doriana se destinaria? Por
quanto tempo seria utilizada? Como essa família está se alimentando hoje? A
prefeitura tem estrutura e orçamento para adotar um programa que inclua alimentos
"in natura"?
Sem
ter pelo menos uma ideia das respostas a essas perguntas, parece-me precipitado
condenar a farinha em termos absolutos como muitos vêm fazendo. É claro que
Doria, que pode ser descrito como um mestre do improviso, obcecado pela Presidência
e que se pauta apenas pelo marketing, não ajuda ao esconder os detalhes do
programa.
Meu
argumento é, no fundo, simples. Se a farinha do prefeito for segura e evitar
que famílias recolham comida do lixo, pode ser uma boa alternativa. Se ela
tiver um valor nutricional maior do que o dos alimentos que essa família
consegue adquirir hoje por conta própria, idem.
E,
antes que leitores de esquerda imprequem contra mim, lembro que esse é um
conceito muito semelhante ao da redução de danos em drogas, que é aplaudido por
nove entre dez progressistas.
*Publicado
no jornal Folha de S.Paulo, em 17/10/17.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2017/10/1927634-a-farinha-do-prefeito.shtml
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