Excelente texto do psicanalista Contardo
Calligaris sobre a questão da maioridade penal. Ele se posiciona a favor de se
extinguir "maioridades e minoridades" penais, valorizando a
responsabilização por seus atos daqueles que sabem discernir entre o certo e o
errado, além de escancarar a idealização alienada de parcela da população sobre
a "pureza" da infância. Essa idealização prejudica o próprio
amadurecimento do indivíduo, infantilizando seres que terão dificuldade de se
tornarem adultos.
Maioridade penal?
Contardo
Calligaris
A Comissão de Constituição e Justiça da
Câmara dos Deputados aprovou a constitucionalidade da proposta de diminuição da
maioridade penal de 18 para 16 anos.
Ela
ainda será discutida em outra comissão especial antes de chegar ao plenário,
mas já agita os espíritos.
Se
você conta com essa mudança para que a repressão e a prevenção da delinquência
juvenil sejam mais eficientes, melhor esquecer.
Neste
caso, concordo com a Presidente da República: "Reduzir a maioridade penal
não vai resolver o problema da delinquência juvenil".
Em
suma, a proposta é inócua. E é possível que ela seja nociva: como lembrou
Drauzio Varella (na Folha de 4 de abril), adolescentes encarcerados com adultos
se tornarão rapidamente profissionais do crime, e serão arregimentados nas
organizações que mandam na cadeia.
Hélio
Schwartsman (na Folha de 8 de abril) também é contra a diminuição da maioridade
penal e observa que a proposta aprovada é justificada por citações bíblicas.
Penso
como ele: vamos deixar ao Estado Islâmico a iniciativa de políticas públicas
decididas com base em textos sagrados. No fim de sua coluna, Schwartsman
escreve que gostaria de ouvir "boas" argumentações a favor da
diminuição da maioridade penal. Vou tentar.
Antes
disso: alguns opositores da proposta acham que a única (e verdadeira) razão
para a redução da maioridade penal seria a vontade de punir os adolescentes
infratores e de se vingar deles.
Não
vejo o problema: em geral, não acho que esta vontade seja necessariamente um
sentimento vergonhoso.
Enfim,
sou contra a redução da maioridade penal ou a favor dela? E redução de 18 para
que idade?
Meu
sentimento, desta vez, é radical: sou contra a existência de maioridades e
menoridades penais, seja qual for a idade fixada.
Aqui,
um parêntese: claro, para que alguém seja imputável, é preciso que seja capaz
de fazer uma diferença entre o certo e o errado.
Também
é lícito pedir que o amadurecimento cerebral (por exemplo, o desenvolvimento do
córtex pré-frontal) garanta um mínimo de autocontrole. Mas mesmo esse requisito
básico mereceria um longo debate, que talvez só seja possível resolver caso a
caso.
Volto
ao que me importa. A própria ideia de uma maioridade penal é um corolário da
ideia de que a infância seja uma época diferenciada e merecedora de um
tratamento especial, de modo que seja "mais feliz" do que a vida
adulta.
As
duas ideias, aliás, são coevas: prosperam desde o século 19.
No
fim do século 18, quando perdemos a convicção absoluta de que a vida de nossa
alma seria eterna, começamos a proteger e venerar as crianças, na esperança de
que elas nos continuariam, seriam o remédio contra nossa mortalidade.
Logo,
descobrimos o prazer de vê-las sempre saltitantes e despreocupadas, e decidimos
que não seriam imputáveis juridicamente: seu sorriso, por mais que fosse um
pouco besta, seria a imagem da "felicidade" de nosso futuro.
Essa
mudança cultural poderia ter apenas melhorado a vida dos pequenos na nossa
cultura. Mas não parou por aí: a partir da metade do século passado, a
idealização da infância se tornou um desastre –para as próprias crianças, que
não conseguem mais crescer, e para os adultos, que não param de regredir.
B.,
10, indigna-se por ter que fazer seu dever de casa (que é irrisório, como é
habitual, para não comprometer o sagrado jogo infantil). Ele esperneia e, já
chorando de raiva, grita: "Eu sou uma criança!".
B.
escolheu bem seu trunfo final. Sabe que os adultos não querem que ele cresça,
mas desejam que continue brincando, numa caricatura repetitiva da infância
encantada.
Ou
seja, descobriu que os adultos idealizam a vida na idade dele, não a adulta. O
problema de B. (mas duvido que ele se importe com isso) é que, por esse
caminho, ele não tem como querer amadurecer.
As
crianças ganharam uma relevância incrível por carregarem nosso futuro e
resistirem contra nossa finitude. Por serem tudo o que nos sobra da nossa
imortalidade (da qual duvidamos), as amamos como nunca na história foram
amadas.
Mas
é bom desconfiar dos amores excessivos. No caso, se amamos as crianças como
ectoplasmas que garantiriam nossa sobrevivência, também as odiamos por ser
fadadas a sobreviver à gente.
Esse
ódio se expressa nas condutas que as condenam a viver numa infância sem fim,
sem nunca se tornarem adultas.
Detalhe:
a leniência com os "menores" é uma dessas condutas.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2015/04/1616995-maioridade-penal.shtml
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