por Bruno Salama e Lucas Mendes
A liberdade individual é o valor supremo no pensamento hayekiano, e o
estado de liberdade é aquele em que cada um pode usar seu conhecimento com
vistas a atingir seus propósitos; o grande algoz da liberdade é o oportunismo.
O termo oportunismo tem em Hayek um sentido específico. Ele representa
não apenas aquilo que Oliver Williamson anos depois chamaria de “busca do autointeresse
com malícia”.[1] Para
além da malícia, o oportunismo englobaria também formas de pensar eivadas de
“erro intelectual”, notadamente o cientificismo e o pragmatismo.
Estes seriam a quintessência da húbris e arrogância humanas, bem como do
autoengano e da falsa crença do homem moderno na sua capacidade de ordenar a
sociedade, que no entanto é formada fundamentalmente por processos espontâneos
nos quais as intervenções humanas produzem com frequência consequências
imprevisíveis e inesperadas. O oportunismo é o algoz da liberdade porque se
manifesta na ação política instrumental que sacrifica a defesa da liberdade a
fim de corrigir supostas distorções e a dar respostas a
supostas necessidades de momento.
Liberalismo e sociedade de princípios
Em uma sociedade livre, diz Hayek, todo esforço político deve estar
centrado na preservação da liberdade. Isso quer dizer que as tentativas de
aperfeiçoamento social devem sempre levar em conta um conjunto de normas
abstratas coerentes (nomos). Quando a política e a legislação se baseiam
em normas organizacionais (thesis), o resultado é a supressão da
liberdade e a eliminação dos seus frutos.
A restrição à liberdade é frequentemente invocada como uma solução para
problemas conjunturais. O problema, diz Hayek, é os efeitos indiretos dessas
soluções são imprevisíveis; é muito difícil estabelecer claramente todas as
perdas que a restrição à liberdade pode acarretar. Quando se levam em conta os
efeitos imprevistos no longo prazo, o cálculo de custos e benefícios se torna
impossível. As intervenções no mercado através da legislação, por exemplo,
gerarão efeitos imediatos visíveis e possivelmente satisfatórios aos olhos do
público e dos burocratas; a médio e longo prazo, contudo, tenderão a gerar
efeitos nocivos e indesejáveis. Um congelamento de preços e um confisco de
poupança são apenas alguns dos exemplos que ilustram bem essa dinâmica: mesmo
quando reduzem a inflação no curto prazo, no longo prazo tendem a gerar
escassez de investimentos, de produtos e de confiança pública.
Esses efeitos negativos são como mutações genéticas: são
imprevisíveis ex ante facto, mas são inteligíveis ex post
facto. E a partir do momento em que se tornam inteligíveis, frequentemente
passam a ser interpretados como distorções da ordem espontânea da sociedade
livre. Quando os efeitos são entendidos dessa forma, sua correção parece
requerer novas intervenções estruturantes da parte dos governos. Cria-se,
assim, um círculo vicioso em que efeitos imprevistos induzem os burocratas e o
público a justificarem novas restrições à liberdade e novos atos de
intervenção.
Vem daí o princípio tipicamente hayekiano de defesa “dogmática” da
liberdade, e, ainda a noção de que a liberdade não pode ser trocada por outras
exigências, como bem-estar social ou igualdade. A defesa da liberdade como
princípio supremo tem assim um caráter dúplice: sua proteção é não apenas um
fim em si mesmo, mas também um meio para resguardar a possibilidade de
consecução dos objetivos de cada membro da sociedade.
É por isso, ademais, que no sistema hayekiano a liberdade se torna
possível somente quando a sociedade está fundada em um sistema político
ideologicamente orientado à proteção de valores universais de justiça. Isso
explicaria, segundo Hayek, por que as instituições tipicamente ocidentais como
o governo tripartite e o sistema democrático, funcionam bem em alguns lugares,
mas não em outros. Explicaria, em particular, o insucesso dos transplantes
dessas instituições para os países onde a tradição de respeito e defesa da liberdade
não vigoravam.
Isso não quer dizer, por outro lado, que a visão da liberdade como uma
possibilidade de uso de conhecimento com vistas a propósitos individuais seja
egoísta. Ao contrário, diz Hayek, o genuíno altruísmo é aquele exercido
voluntariamente; e sujeitar os outros a seguirem os valores altruístas romperia
com a virtude inata do comportamento altruísta. Liberdade, egoísmo e altruísmo
são, portanto, conceitos inseparáveis, embora distintos. Quando o bom português
abre sua padaria às seis horas da manhã para vender pão recém-saído do forno,
ele não está agindo com motivações altruístas. No fundo, seu esforço está
simplesmente voltado a satisfazer seus próprios interesses egoístas em obter
dinheiro com a venda dos pães. Essa é a força benéfica (ou função social) do
egoísmo num contexto de liberdade e respeito às instituições de justiça.
Dois inimigos da ordem livre e um só expediente: o oportunismo
Durante o século XX, o pragmatismo e o cientificismo teriam sido
verdadeiros epítomes do oportunismo. Em comum, essas perspectivas rejeitaram o
valor de um sistema social baseado em princípios. Em nome do pragmatismo
político ou do tecnicismo, rejeitaram-se as ideologias, ou seja, os conjuntos
de princípios que sinalizam os valores essenciais para a manutenção e
desenvolvimento de uma ordem livre.
O cientificismo, declara Hayek, esconde os limites do pensamento
instrumental. A grande tentação dos cientistas sociais foi pretender estender
os métodos das ciências naturais e exatas às ciências sociais. O problema dessa
tentativa é que, enquanto as ciências naturais e exatas lidam com dados
concretos e fixos, as ciências sociais lidam com dados abstratos e mutantes,
pois seu foco são os seres humanos no contexto de um arranjo social, incluindo
aspectos mutantes como suas crenças, valores, disposições, medos e incertezas.
Embora mutantes, essas considerações não são moldáveis: é impossível manipular
experimentalmente o objeto das ciências sociais acreditando que algum resultado
concreto possa ser previsto pelo observador.
O pragmatismo, a seu turno, sabota a liberdade em nome de facilidades
imediatas que, no mais das vezes, beneficiam determinados grupos específicos.
Em nome do pragmatismo, agentes políticos e privados renegaram observância aos
princípios e normas da moralidade que salvaguardavam a liberdade individual. Em
vez disso, abraçaram uma doutrina construtivista que aplica “técnicas sociais”
para resolver caso a caso os problemas da ordem social. Libertos de apego
“dogmático” aos princípios e valores fundantes da sociedade, os pragmatistas
encaram a ciência e a técnica como os meios adequados para o homem construir
seu destino e de toda sociedade.
Hayek denomina as tentativas de ferir os princípios universais em nome
de outras considerações como sendo “oportunistas”. Tais investidas, mesmo que
apoiadas pela maioria do povo, geralmente conduzem a resultados não pretendidos
pelos próprios defensores do plano. Os resultados indesejados, por sua vez,
tenderão a legitimar novas intervenções inerentemente cerceadoras da liberdade,
porém nem sempre claras aos olhos dos planejadores. É desse modo que o
cientificismo e o pragmatismo, quando traduzidos em ações práticas, tendem a
desencadear consequências indesejáveis. Eles conduzem as comunidades a cada vez
mais restrições da liberdade até, possivelmente, a total opressão.
A política pode ser guiada por dois mecanismos: por princípios de uma
ordem livre ou pelo oportunismo. Porém, dirá Hayek, esses dois mecanismos não
são compatíveis. O primeiro não informa exatamente qual será o resultado da
nação que adotar o respeito aos princípios que sustentam uma ordem livre, mas
indicará o norte em direção a uma ordem global ideal –—mesmo que essa ordem
nunca seja alcançada concretamente. O segundo mecanismo, ao contrário, usará
todos os meios políticos para determinar resultados sociais e econômicos
específicos, assim fortalecendo a expansão do governo sobre a liberdade
individual. Este meio pode arruinar as instituições que salvaguardam a
liberdade e a ordem espontânea da sociedade. É uma via que, se levada às suas
últimas consequências, fornece acesso ao totalitarismo.
É preciso notar, contudo, que essa teleologia em que oportunismo leva à
tirania não é um caminho inexorável, como muitos comentadores e críticos de
Hayek comumente sugerem. É conveniente atentarmos para uma passagem em que
Hayek trata da questão:
"O que pretendi afirmar em O Caminho da Servidão certamente
não foi que todo afastamento, mesmo pequeno, daquilo que considero os
princípios de uma sociedade livre nos arrastará inelutavelmente para um sistema
totalitário. Minha intenção foi fazer a advertência que, numa linguagem mais
familiar, se expressa na frase: 'Se não corrigir seus princípios, você vai se
dar mal.'" (p. 65).
Talvez o que Hayek realmente tenha querido dizer é que os frutos que a
ordem espontânea poderia gerar se a liberdade não fosse cerceada ficam
obscurecidos pela dinâmica da intervenção governamental, que leva a
consequências não pretendidas que levam então a nova intervenção governamental.
Em nome do pragmatismo ou do cientificismo, políticas públicas impulsionadas
pelo oportunismo renunciam aos princípios universais que deveriam guiar uma
ordem social. Esse processo solapa cada vez mais as condições que permitiram o
advento da civilização e o incrível aumento do bem-estar promovido por ela. Em
contrapartida, promove o ideal de que repetidas intervenções e sacrifícios da
liberdade serão sempre necessárias.
Se o mercado é imperfeito, o planejamento não é a solução
Nas democracias de massas, políticos e grupos de pressão (com
frequência, ressaltou Hayek, deixou de haver distinção entre esses dois
agentes) estabeleceram justificativas para as mais variadas intervenções do
Estado no mercado. Resultou que as democracias contemporâneas se transformaram
em solo fértil para grupos oportunistas. A perda da confiança nos princípios
veio acompanhada do aumento da confiança em medidas governamentais e
legislativas que prometem resultados imediatos a grupos específicos, o que teria
sido assim um fator enfraquecedor da ordem liberal e do estado de direito.
Hayek entende que concepções econômicas equivocadas foram amplamente
acatadas, resultando na legitimação das mais perniciosas medidas
governamentais. O pragmatismo e o cientificismo foram importantes instrumentos
intelectuais favoráveis a tais medidas. Os apelos oportunistas prometem
resultados positivos rápidos e por isso tendem a angariar aprovação popular.
Daí por que os defensores da liberdade — vale dizer, os adeptos do pensamento
liberal clássico — falharam nas suas tentativas de obstar aqueles que propõem
medidas voltadas ao curto prazo sacrificando normas universais.
A mudança na compreensão do que seja a “lei” espelharia a rejeição à
visão liberal. A função da lei deixou de ser a prescrição de normas gerais de
conduta justa, idêntica para todos os cidadãos e aplicáveis num número
desconhecido de casos futuros; ao invés disso, passou a ser a discussão de
normas organizacionais, estruturantes, e instrumentais para o atingimento de
objetivos específicos e particularistas[2] .
Assim, partidos e grupos de pressão, tais como sindicatos, ONGs, entidades de
classe etc., passaram a utilizar o Estado para alcançarem benefícios próprios.
Tais práticas oportunistas, largamente aceitas em âmbito intelectual e
progressivamente refletidas nas decisões políticas, diluíram os princípios que
deveriam nortear um regime genuinamente democrático. O império da Lei cedeu
espaço ao império da vontade dos legisladores.
A sociedade e suas contingências
A vida social é marcada pelas contingências humanas, que se podem chamar
de contingências internas ou externas. As internas se dividem em duas: em
primeiro lugar, há contingências de ordem física, que surgem porque não
possuímos força e capacidade de executarmos tudo aquilo que desejamos com nosso
corpo. Em segundo lugar, há contingências de ordem intelectual ou mental, que
surgem porque nossa mente é limitada tanto em sua capacidade de reter
conhecimento quanto na maneira como a mente de cada indivíduo age e reage
diante dos fatos que se apresentam ao longo da vida.
Além dessa, o homem encontra uma contingência externa, referente aos
limites de recursos fornecidos pela natureza. Há lugares, por exemplo, onde a
água potável é abundante; há outros em que não. Há regiões em que o clima é
favorável ao cultivo de determinados cereais, enquanto em outras o clima é
adverso. Além disso, o homem não possui em abundância tudo aquilo de que
gostaria. As contingências externas determinam uma situação de desconforto que
impele o homem à ação e à cooperação com seu semelhante. O leitor talvez já
tenha se dado conta de que em economia tal contingência se chama “escassez”, o
que impõe aos homens a necessidade de utilizarem com eficiência os recursos
econômicos disponíveis.
O problema, sugere Hayek, é que o cientificismo e o pragmatismo parecem
ignorar essas contingências inerentes à condição humana. A eventual frustração
de determinados planos dos homens e a impossibilidade prática do equilíbrio
econômico, conforme pressupõem certos modelos teóricos, acabam servindo de
justificativa para políticos e burocratas experimentarem seus planos a fim de
atingirem resultados aparentemente desejáveis ou mesmo admiráveis. Esses homens
e seus apoiadores acreditam que manipulando as peças do “jogo econômico e
social” poderão obter, matematicamente, os resultados que almejam. Assim
procedendo, tratam a grande ordem espontânea da sociedade como um laboratório
de ciências exatas.
Mas a ordem complexa da sociedade e seus mutantes elementos — que nada
mais são que os seres humanos — não apresentam regularidades entre suas partes.
Por isso, a manipulação da sociedade através de medidas governamentais, especialmente
através do grande instrumento de manobra política — a saber, a legislação —
jamais reverte numa ordem conforme pretendida. O uso do método científico das
ciências exatas e naturais seria por isso um dos sérios equívocos do pensamento
social moderno.
Hayek foi um dos autores mais notáveis na luta contra o cientificismo no
século XX. Argumentou ser irracional extrapolar o método das ciências naturais
e exatas -—que lidam com variáveis constantes — para as ciências sociais, que
genuinamente lidam com variáveis mutáveis. Numa das passagens, assim nosso
autor observou esse exagero:
"A visão míope da ciência que se concentra no estudo de fatos
particulares porque só estes podem ser empiricamente observados, e cujos
defensores até se vangloriam de não ser guiados por aquela concepção de ordem
global só alcançável pelo que denominam ‘especulação abstrata’, de modo algum
nos torna mais capazes em moldar uma ordem desejável; ao contrário, ela nos
priva na realidade de toda orientação eficaz para a ação bem sucedida."
(p. 71)
A ordem global a que Hayek se refere é a própria ordem espontânea de uma
sociedade livre. Essa ordem é considerada uma utopia porque ela jamais é uma
ordem concreta, observável empírica e racionalmente, como queria Descartes.
Todavia, essa ordem, por ser puramente abstrata, deve servir de modelo ao
cientista social, como um guia que aponte a ordem ideal a ser alcançada.
Segundo Hayek, tal ordem constitui o verdadeiro alvo para ordenar políticas
racionais e apontar soluções para problemas da política prática.
O papel do profissional do direito numa ordem livre
Para Hayek, o genuíno papel dos profissionais do direito é aplicar os
princípios gerais do direito, as normas abstratas de conduta justa, idênticas à
todos os cidadãos e num número incerto de casos futuros. Não é função e nem
dever do profissional do direito modificar tais normas. Essa postura não serve
apenas para assegurar a indispensável estabilidade jurídica, mas também para
garantir uma ordem que favoreça o progresso material e a liberdade individual.
Hayek reconhece que existem lacunas deixadas pelas regras jurídicas, e
que nesses casos é necessário que o profissional do direito, especialmente o
juiz, formule novas regras. Contudo, essas lacunas devem ser preenchidas
basicamente através dos costumes. Nem os juízes, nem as partes envolvidas
precisam saber ou indagar qualquer coisa a respeito da ordem legal resultante
de decisões específicas. Ao contrário, o juiz deve ater-se exclusivamente à
lógica autônoma do direito.
Esta função dos profissionais do direito deve ser tão arraigada, observa
Hayek, que eles devem até mesmo anular a intenção do legislador, caso sua
deliberação afronte as normas gerais que regem o direito. Essa foi, como nota
Hayek, a função clássica dos juristas até pelo menos o início da idade moderna.
Entretanto, essa resistência tem sido solapada por uma nova compreensão do que
seja o próprio direito. Ao deslocar o conceito de lei como expressão de normas
universais para normas organizacionais, a nova filosofia do direito impulsionou
os juristas a distorcerem a função precípua da lei: a de salvaguardar a
liberdade. Hayek, todavia, adverte que se tal filosofia do direito atingir
hegemonia no âmbito da formação dos profissionais do direito, a lei abandonará
a proteção da liberdade individual e, em última análise, legitimará um sistema
totalitário.
Outrora, a liderança jurídica era exercida pelos juristas ligados ao
direito privado, isto é, os que compreendiam a lei em seu sentido genuíno como
norma universal, em nossos dias, assiste-se à hegemonia dos legisladores do
direito público, que reconhecem a lei como normas de governo. Nesse novo
contexto, a liderança jurídica pertence aos algozes da verdadeira lei e,
portanto, aos inimigos do próprio estado de direito.
Sobre o erro dos economistas
Nem só aos juristas cabe a responsabilidade pelo desvirtuamento das
democracias liberais. Hayek advertiu que muitas das ideias que governam as
ações políticas no mundo são concepções equivocadas da realidade. De modo
especial, observa o quão danoso é o fato de as ideias econômicas que orientam
os juristas serem geralmente falsas. Exemplos dessas concepções incluiriam a
crença de que a revolução industrial prejudicou a qualidade de vida dos
operários em prol do enriquecimento dos industriais; ou a crença de que o livre
mercado tende necessariamente à instabilidade e a colapsos financeiros, que
arrasam a vida de muitos trabalhadores e empresários.[3]
Mas ao contrário do que escreveu Marx em O Capital, o nível
de vida das famílias operárias no capitalismo nascente não diminuiu, mas
aumentou de forma inédita; e o livre mercado é instável e gerador de colapsos
econômicos arrasadores, dirá Hayek, somente quando o Banco Central, através de
seus mecanismos específicos, injeta moeda-papel no sistema econômico de modo
artificial, sinalizando aos agentes que há mais poupança/capital para
investimento do que realmente existente. Em síntese, “fábulas” formuladas por
economistas teriam contaminado os juristas e filósofos do direito. Quando
combinadas com o apelo construtivista para a “necessidade” de se planejar a
economia e redesenhar a ordem social, diversas fábulas econômicas teriam
subvertido tanto a política pública quanto o direito.
Considerações finais
Talvez nenhum outro pensador tenha atribuído às ideias tanta importância
quanto Hayek. São principalmente as idéias – e não as conjunturas
infraestruturais – que determinam os caminhos das políticas públicas. O
liberalismo do século XVIII e XIX não teria fornecido elementos suficientes
para impedir a hegemonia dos expedientes oportunistas e, por isso, teria sido
ele próprio presa do “erro intelectual”. Vale dizer: o liberalismo teria
sucumbido por não ter sido capaz de articular claramente seus princípios. O
ideal liberal baseou-se, sob muitos aspectos, em pressupostos vagos. Seja como
“capitalismo” ou “laissez-faire”, ou ainda como “economia de livre
mercado”, todas essas definições foram excessivamente genéricas em termos de
ajustar um conjunto coerente de princípios. O caráter ambíguo dos pilares do
sistema livre teria permitido o avanço do estatismo e na pior das situações,
até do totalitarismo, como de fato ocorreu no século XX. Não surpreende, portanto,
que o antídoto para esse estado de coisas venha também no plano das ideias.
Para Hayek, o único meio para revigorar as democracias seria sensibilizar as
pessoas, através da formação da opinião pública, a confiarem solidamente em
princípios claros e não intercambiáveis por supostas “vantagens sociais”.
Este diagnóstico do erro intelectual tem, contudo, suas dificuldades. A
principal delas é a de exigir um parâmetro comparativo, digamos, de acerto
intelectual. Ocorre que este parâmetro é incerto e contingente. Hayek descarta
a possibilidade de que o parlamento possa ser o foro correto para definição do
parâmetro de justiça ou conveniência. Mesmo sem ser anarquista – certamente não
se trata de um anarquista – Hayek demonstra uma grande desconfiança do parlamento:
acredita que a única função própria ao parlamento seja a de monitorar e
controlar o governo. Assim, a saída por ele encontrada é apelar para o costume
e (ora velada, ora expressamente) à tradição como guias.
Essa saída, contudo, não está livre de problemas. Hayek enfatiza a
evolução gradual da sociedade e de suas regras, ao invés do desenho consciente
em bases racionalistas. Contudo, diante do fato de que nem todos os costumes
são plenamente justificáveis, Hayek nem sempre enfrenta claramente as tensões
existentes entre a democracia (baseada no princípio de deliberação) e
liberalismo (baseada na defesa da liberdade e atrelada aos costumes). Em
particular, não ficam claras as circunstâncias em que a lei deverá absorver ou
afastar os costumes. Daí surge o debate e a controvérsia sobre a atualidade da
obra de Hayek. Essas questões ficarão mais claras à medida em que progredirmos
com a discussão dos aspectos jurídicos da obra de Hayek.
Notas
[1] Williamson,
Oliver. The Economic Institutions Of Capitalism. Nova Iorque: Free
Press, 1985.
[2] Sobre a
distinção entre os dois tipos de normas, ver nossa resenha Hayek e a ideia de Ordem Espontânea.
[3] Hayek,
Friedrich (org.). Capitalism and the Historians. Chicago: Chicago
University Press. 1956.
* Publicado originalmente em 07/12/2009.
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