terça-feira, 5 de novembro de 2024

Lições do passado e do presente: os casos da Enron e da Americanas S.A.


 

Lições do passado e do presente: os casos da Enron e da Americanas S.A.

Marco Milani

Texto publicado na revista HSM Management, em 05/11/24

Os casos de fraude contábil envolvendo as empresas Enron, nos Estados Unidos, e Americanas S.A., no Brasil, são emblemáticos exemplos de colapsos empresariais provocados por práticas fraudulentas que evidenciaram falhas em seus mecanismos de governança corporativa e controles internos. Embora as fraudes tenham ocorrido em cenários regulatórios e geográficos distintos, ambos os casos compartilham semelhanças importantes, principalmente em relação ao papel da gestão e dos auditores, além de terem gerados impactos significativos nos mercados em que atuavam.

O caso da Enron, desvendado em 2001, expôs um esquema de manipulação financeira sofisticado, no qual a empresa, com o auxílio de sua empresa de auditoria externa, Arthur Andersen, ocultou bilhões de dólares em dívidas e inflou seus lucros por meio de uma complexa estrutura de entidades de propósito específico (SPEs). Essas SPEs foram criadas para manter passivos fora das demonstrações financeiras, iludindo acionistas e investidores sobre a verdadeira situação patrimonial da companhia.

A governança corporativa da Enron falhou gravemente ao permitir que seus altos executivos explorassem brechas nas normas contábeis e de auditoria. Além disso, a cultura dessa empresa, marcada por comportamentos de alto risco e incentivos focados em ganhos de curto prazo, desempenhou um papel central no desfecho do caso.

Por sua vez, a fraude contábil na Americanas S.A envolveu a subavaliação de passivos operacionais, em especial relacionados a fornecedores, o que permitiu à empresa aparentar uma falsa solidez financeira por anos. A Americanas inflou seus resultados ao reportar incorretamente suas dívidas, resultando em um prejuízo bilionário que veio à tona após anos de auditorias negligentes. Assim como na Enron, a governança corporativa da Americanas S.A. foi bastante criticada por sua ineficácia em detectar e impedir as práticas fraudulentas, levantando dúvidas sobre a integridade dos serviços de auditoria externa. A falta de transparência e os controles internos insuficientes permitiram que a fraude se prolongasse, destacando a responsabilidade dos auditores sobre a discrepância entre os dados financeiros divulgados e a realidade.

Embora as fraudes tenham características semelhantes, como a manipulação de passivos e a conivência de auditores, as respostas regulatórias nos países das respectivas sedes diferiram. O colapso da Enron resultou na promulgação da Lei Sarbanes-Oxley, em 2002, que impôs regras mais rígidas para as empresas listadas e seus auditores nos Estados Unidos. Por outro lado, no Brasil, o caso da Americanas S.A. reacendeu o debate sobre a eficácia das políticas e práticas de governança corporativa e auditoria, mas ainda se aguarda uma resposta regulatória proporcional às falhas expostas.

Um contraste importante entre os dois casos é o contexto cultural e econômico em que ocorreram. A Enron operava durante um período de rápida expansão dos mercados de energia e em um ambiente de desregulamentação nos Estados Unidos, o que levou a práticas empresariais agressivas e pouco transparentes. Já a Americanas S.A. estava inserida em um cenário de turbulência econômica no Brasil após a crise sanitária gerada pela pandemia da Covid-19, o que fez com que alguns analistas interpretassem a fraude como uma tentativa desesperada da gestão de ocultar os graves problemas financeiros, objetivando manter a confiança dos investidores e do mercado.

Em ambos os casos, os escândalos contábeis evidenciaram as limitações dos sistemas de governança corporativa e as falhas nos controles internos, além de ressaltarem a importância de auditorias independentes e eficazes. A análise desses episódios reforça a necessidade de estruturas e práticas corporativas transparentes, éticas e responsáveis como pilares fundamentais para a integridade das organizações, independentemente do local em que se encontram.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Considerações sobre a verdadeira pesquisa científica


 Considerações sobre a verdadeira pesquisa científica

 

Marco Milani

 

A epistemologia, enquanto campo de estudo que investiga a natureza, a produção e os limites do conhecimento, possui um papel essencial na caracterização de uma pesquisa científica.

Desde Aristóteles até os pensadores contemporâneos como Karl Popper e Thomas Kuhn, o desenvolvimento da ciência tem sido norteado por discussões sobre a veracidade, confiabilidade e validade dos processos investigativos. A distinção entre o que poderia ser considerado uma pesquisa verdadeira e uma falsa é, dessa maneira, uma questão epistemológica central, que vem desafiando gerações de estudiosos sobre a integridade do conhecimento científico e que exige a aplicação de métodos rigorosos e critérios éticos e lógicos.

O que define uma pesquisa verdadeira não é apenas a sua conformidade com os métodos aceitos, mas também sua capacidade de gerar conhecimento confiável e verificável. Segundo Popper (2007), uma das características principais de uma pesquisa é sua capacidade de ser falsificável, ou seja, de apresentar proposições que possam ser testadas e potencialmente refutadas. Para Popper, a ciência não progride pela aceitação de hipóteses, mas pela eliminação de falsidades através de testes rigorosos. Nesse sentido, a pesquisa verdadeira é marcada pela abertura ao questionamento e pela possibilidade de ser replicada e examinada criticamente por outros pesquisadores.

Em contrapartida, uma pesquisa falsa, ou pseudociência, careceria de rigor metodológico e, frequentemente, de transparência. Tais pesquisas são marcadas pela ausência de dados confiáveis e pela não observância das regras do método científico. Feyerabend (2011), embora crítico de um rígido formalismo científico, ressalta que a pesquisa que não segue um padrão mínimo de controle e não se submete ao teste da falsificabilidade está fadada a gerar conhecimento duvidoso. Segundo o autor, a ciência precisa de certa flexibilidade, mas, ao se desviar completamente dos princípios investigativos, a pesquisa corre o risco de se tornar falaciosa e enganar os leitores e, indiretamente, a sociedade como um todo.

A pesquisa verdadeira é construída sobre fundamentos epistemológicos sólidos, o que implica uma postura objetiva e imparcial por parte do pesquisador. A objetividade é um valor fundamental, logo a ciência deve se fundamentar em dados e evidências, e não em conjecturas ou interesses pessoais. Nesse sentido, a pesquisa verdadeira requer que o pesquisador adote uma posição neutra e se baseie em evidências observacionais ou experimentais sólidas.

Ao contrário do que pseudopesquisadores poderiam adotar, a neutralidade não é uma simples declaração de isenção, mas uma postura intelectualmente honesta que analisa as afirmações contrárias com o mesmo rigor daquelas que estejam em desacordo com suas pressuposições.

As metodologias utilizadas em uma pesquisa verdadeira seguem etapas rigorosas, como a formulação de hipóteses claras, coleta de dados controlada e análise sistemática. A pesquisa falsa frequentemente negligencia esses princípios. Um exemplo clássico é o uso de amostras tendenciosas ou pequenas, que comprometem a validade dos resultados e tornam as conclusões problemáticas. Lakatos (1970) argumenta que uma pesquisa científica robusta deve estar embasada em um programa de pesquisa, ou seja, um conjunto de teorias e métodos que podem ser continuamente desenvolvidos e testados. Quando a pesquisa se desvia dessa estrutura, ela se aproxima da pseudociência.

Outro ponto fundamental de distinção é a transparência na divulgação dos dados e métodos. Uma pesquisa verdadeira é aberta e transparente, permitindo que outros pesquisadores possam verificar e replicar seus achados. Kuhn (1998) descreve o progresso da ciência como uma série de revoluções paradigmáticas, nas quais o conhecimento avança por meio de mudanças radicais e inovações teóricas. No entanto, ele ressalta que a base desse progresso é o escrutínio público e a revisão pelos pares, algo que está ausente na pesquisa falsa. A revisão por pares é um mecanismo essencial para a validação do conhecimento científico, já que possibilita que outros especialistas avaliem a validade da pesquisa e seus achados.

A falta de clareza metodológica também é um dos entraves para a pesquisa, pois não garante que os resultados não sejam apenas fruto de um acaso ou de manipulações intencionais. Popper (2007) defendeu que a reprodutibilidade é um dos pilares do conhecimento científico, uma vez que a ciência se baseia em experimentos controlados que podem ser realizados por diferentes pesquisadores em diferentes contextos.

A ética científica também é um critério importante para diferenciar pesquisa verdadeira de falsa. Muitas pesquisas falsas estão associadas a conflitos de interesse não divulgados, o que compromete a sua validade.

O avanço da ciência depende de uma constante vigilância sobre os critérios epistemológicos que garantem a veracidade e a confiabilidade das investigações científicas, sendo fundamental que a comunidade acadêmica continue a defender esses valores em suas práticas.

 

Referências

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

FEYERABEND, P. Contra o Método. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

KUHN, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1998.

LAKATOS, I. Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes. In: LAKATOS, I.; MUSGRAVE, A. (Orgs.). Criticism and the Growth of Knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 1970.

MERTON, R. The Sociology of Science: Theoretical and Empirical Investigations. Chicago: University of Chicago Press, 1973.

POPPER, K. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 2007.

 

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

As propostas socialistas fracassaram porque ignoraram a natureza humana?

 


As propostas socialistas fracassaram porque ignoraram a natureza humana?

Sim, um dos principais motivos pelos quais as propostas socialistas, especialmente as utópicas, fracassaram é que elas ignoraram ou subestimaram aspectos fundamentais da natureza humana, como os incentivos pessoais, e o desejo por liberdade e autonomia. Aqui estão alguns pontos que ilustram essa ideia:

1. Autonomia

As propostas socialistas utópicas muitas vezes baseavam-se em uma visão de que os seres humanos poderiam viver em perfeita cooperação e solidariedade, eliminando o egoísmo e a busca por ganhos pessoais. No entanto, a natureza humana inclui uma forte tendência à autonomia individual, com as pessoas buscando proteger seus próprios interesses e exercer controle sobre suas vidas e escolhas. Modelos que exigem sacrifícios individuais significativos em prol do bem coletivo muitas vezes falham em longo prazo, porque não correspondem à realidade da motivação humana.

2. Incentivos e Motivação

O socialismo utópico frequentemente negligenciou a importância de incentivos econômicos para motivar o esforço e a inovação. No capitalismo, as pessoas são motivadas pela possibilidade de ganho pessoal, seja através de salários, lucro ou reconhecimento. No entanto, modelos socialistas que propõem a eliminação da propriedade privada e da competição muitas vezes removem os incentivos que impulsionam a produtividade e a eficiência. A ausência desses incentivos pode levar à estagnação econômica e à desmotivação.

3. Diversidade de Aspirações

A natureza humana é extremamente diversa, com diferentes pessoas buscando coisas distintas: algumas priorizam o conforto material, outras a liberdade criativa, e outras ainda a segurança emocional. As propostas socialistas utópicas tendiam a pressupor que todos poderiam compartilhar uma visão comum de bem-estar, ignorando a variedade de aspirações e desejos que as pessoas têm. Essa diversidade é mais facilmente acomodada em sistemas que permitem maior flexibilidade individual, como o liberalismo e o capitalismo, do que em modelos que tentam padronizar as condições de vida.

4. Competição Natural

A competição é uma característica natural da vida humana, presente em diversas esferas: econômica, social e até biológica. O socialismo utópico tentou eliminar a competição, acreditando que isso levaria à cooperação plena e harmonia social. No entanto, a competição, quando regulada, pode ser um motor de inovação e progresso. Ao tentar suprimir essa tendência, muitos experimentos socialistas acabaram limitando a inovação e a eficiência.

5. Desejo por Propriedade e Controle

A posse de bens e a busca pela propriedade pessoal são impulsos humanos profundos. A propriedade privada, que o socialismo utópico buscava eliminar ou restringir, não é apenas um mecanismo econômico, mas também uma forma de os indivíduos exercerem controle sobre suas vidas e ambiente. Ignorar esse desejo natural por controle pessoal e autonomia contribuiu para o fracasso das propostas que visavam abolir ou centralizar a propriedade.

6. Liberdade e Autodeterminação

Sistemas socialistas utópicos, ao tentar planejar e controlar a sociedade em prol do bem comum, muitas vezes sacrificaram a liberdade individual. A natureza humana valoriza a autodeterminação e a capacidade de escolha, especialmente no que se refere ao trabalho, à vida pessoal e à expressão individual. Quando essas liberdades foram limitadas em experimentos socialistas, como ocorreu nas comunidades de Robert Owen ou nos regimes socialistas posteriores, a reação foi frequentemente de resistência e insatisfação.

7. Idealismo versus Realidade

O socialismo utópico frequentemente propunha um ideal de sociedade onde a cooperação total e a ausência de conflitos resolveriam os problemas da humanidade. No entanto, a realidade das interações humanas inclui conflito, desentendimentos e interesses divergentes. Modelos que ignoraram esses aspectos práticos da natureza humana acabaram fracassando porque não conseguiram lidar com a complexidade da vida social.

8. Histórico de Resultados

Os experimentos socialistas, tanto utópicos quanto centralizados (como no socialismo real do século XX), frequentemente resultaram em ineficiência econômica, baixa produtividade e, em alguns casos, repressão e autoritarismo. Isso ocorreu porque esses sistemas falharam em integrar de forma equilibrada o desejo humano por liberdade, reconhecimento e prosperidade individual com a busca por igualdade e justiça social.

Conclusão

Embora o socialismo utópico tenha idealizado sociedades mais justas e igualitárias, ele frequentemente ignorou ou subestimou aspectos fundamentais da natureza humana, como a autonomia individual, a competição, a necessidade de incentivos e a diversidade de aspirações. Ao tentar criar uma sociedade baseada na cooperação total e na eliminação de estruturas como a propriedade privada e a competição, essas propostas se revelaram impraticáveis e incapazes de lidar com as complexidades e motivações inerentes à vida humana.

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Texto gerado pelo ChatGPT4 em 20/09/24

Por que o liberalismo prosperou e as propostas socialistas fracassaram?


 Por que o liberalismo prosperou e as propostas socialistas fracassaram?


O liberalismo prosperou e as propostas socialistas utópicas fracassaram por uma combinação de fatores históricos, econômicos, sociais e culturais que moldaram a evolução das sociedades modernas. Aqui estão algumas razões principais:

1. Adaptabilidade e flexibilidade do liberalismo

O liberalismo, especialmente na sua forma econômica, demonstrou ser mais adaptável ao longo do tempo. Ele se ajustou às necessidades emergentes da sociedade, adotando políticas que conciliavam princípios de mercado com intervenções estatais moderadas, como o Estado de bem-estar social. Esse ajuste tornou o liberalismo mais viável ao responder às crises sociais e econômicas, permitindo a prosperidade dentro de um sistema capitalista.

2. Eficiência econômica

As economias de mercado defendidas pelo liberalismo mostraram-se mais eficientes em gerar crescimento econômico, inovação e riqueza. A liberdade de mercado incentivou a competição, resultando em avanços tecnológicos, aumento de produtividade e desenvolvimento de infraestrutura. O socialismo utópico, por outro lado, muitas vezes falhava em criar incentivos suficientes para a inovação e produtividade, além de não fornecer mecanismos eficazes para alocação de recursos.

3. Falhas nas implementações socialistas

As tentativas de implementar o socialismo utópico em comunidades cooperativas (como as de Robert Owen) ou em sistemas centralizados (como no socialismo soviético mais tarde) enfrentaram desafios práticos e organizacionais. Essas experiências muitas vezes colapsaram devido à falta de incentivos econômicos individuais, descoordenação, e dificuldades em sustentar o modelo cooperativo ou centralizado em larga escala. As propostas de reorganização social e econômica muitas vezes subestimaram a complexidade da economia e da sociedade.

4. Resistência cultural e individualismo

O liberalismo, especialmente em suas formas mais modernas, encaixou-se bem com os valores de liberdade individual e autonomia que cresceram em importância desde o Iluminismo. O desejo das pessoas de controlar suas vidas, propriedades e escolhas econômicas, características fundamentais do liberalismo, foi uma barreira ao socialismo, que muitas vezes exigia a renúncia de parte da autonomia individual em prol de um bem comum coletivo.

5. Pressão política e resistência institucional

As instituições políticas e econômicas nas sociedades onde o liberalismo se consolidou, como as democracias ocidentais, foram desenhadas para proteger direitos de propriedade e liberdades individuais, valores centrais do liberalismo. Essas estruturas criaram uma barreira para propostas socialistas mais radicais, que enfrentaram resistência tanto das elites quanto de amplas camadas da população. Além disso, o liberalismo defendia reformas graduais, enquanto o socialismo, em algumas de suas versões, buscava mudanças mais abruptas, frequentemente gerando oposição.

6. Fracasso das utopias socialistas

As propostas socialistas utópicas falharam, em parte, porque eram frequentemente idealistas e descoladas da realidade prática. Tentativas de criar sociedades baseadas em cooperação pura e sem competição muitas vezes desconsideravam a natureza humana e os incentivos necessários para que as pessoas trabalhassem com eficiência. A falta de um sistema econômico claro e viável para sustentar esses projetos em larga escala também contribuiu para seus fracassos.

7. O papel do socialismo real no século XX

O socialismo, na prática, foi amplamente identificado com as experiências de regimes autoritários, como o soviético, o que prejudicou sua imagem globalmente. Esses regimes, em vez de representarem uma utopia, acabaram gerando repressão, falta de liberdades, e falhas econômicas, contrastando com os sucessos aparentes do liberalismo democrático no Ocidente.

8. Capacidade do liberalismo de responder a crises

O liberalismo, ao longo do tempo, soube incorporar elementos de proteção social, como regulamentação de trabalho e políticas de seguridade social, para mitigar os efeitos mais negativos do capitalismo. Essa combinação de liberdade econômica com mecanismos de proteção tornou-o atraente para uma ampla base de cidadãos, especialmente no Ocidente.

Em resumo, o liberalismo prosperou porque conseguiu se adaptar ao longo do tempo, manter a eficiência econômica e responder aos anseios por liberdade individual, enquanto as propostas socialistas utópicas falharam em gerar um modelo econômico sustentável e em lidar com a complexidade das sociedades modernas.

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Texto gerado pelo ChatGPT 4, em 20/09/24

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O oportunismo político-ideológico explorando a tragédia aérea da VoePass

 


O oportunismo político-ideológico explorando a tragédia aérea da VoePass

 

Marco Milani

 

A atribuição de causas a eventos trágicos, como acidentes aéreos, muitas vezes é marcada por análises que refletem percepções ideológicas, em detrimento de uma avaliação objetiva das circunstâncias envolvidas. Recentemente, o acidente ocorrido com a companhia aérea VoePass foi alvo de uma narrativa oportunista que o relaciona à ganância que supostamente seria inerente ao sistema capitalista, argumentando-se que a busca incessante por lucro teria comprometido a segurança dos passageiros. Embora essa perspectiva possa encontrar algum respaldo em casos em que práticas empresariais irresponsáveis contribuam para falhas operacionais, é imperativo reconhecer que a ganância, enquanto expressão de uma postura moral, não é exclusiva de um sistema específico, mas sim uma característica humana que transcende fronteiras políticas, sociais e econômicas.

Uma análise histórica e comparativa dos acidentes aéreos em diferentes contextos reforça essa tese. No período da Guerra Fria e nos anos que se seguiram, países com regimes socialistas ou comunistas também testemunharam acidentes trágicos envolvendo suas companhias aéreas, cujas causas podem ser atribuídas, em parte, à ganância ou à falta de priorização da segurança. Exemplos emblemáticos incluem acidentes com a Aeroflot, a principal companhia aérea da União Soviética, como o Voo Aeroflot 217 em 1972 e o Voo Aeroflot 3352 em 1984. Esses eventos, que resultaram em centenas de mortes, ocorreram em um ambiente onde o lucro, no sentido capitalista do termo, não era o principal motor das operações. No entanto, as falhas administrativas, técnicas e, em alguns casos, a negligência das autoridades, demonstram que posturas inadequadas como a falta de responsabilidade podem manifestar-se de diversas formas, independentemente do sistema econômico vigente.

Outro exemplo relevante é o acidente envolvendo o Voo Cubana de Aviación 9646 em 1989, em que a companhia aérea estatal cubana sofreu uma catástrofe após a decolagem, resultando na morte de todos os passageiros e tripulantes, além de vítimas em solo. Novamente, embora o contexto econômico fosse socialista, a tragédia foi associada a falhas técnicas graves e à manutenção inadequada, refletindo uma preocupação insuficiente com a segurança em prol de outros objetivos, que, ainda que não ligados diretamente ao lucro, configuram uma forma de descuido que pode ser associada à ganância institucional.

Assim, supor que determinado sistema econômico, por si só, seja o culpado por tragédias como a da VoePass é uma simplificação oportunista que ignora a complexidade das questões envolvidas e a universalidade das falhas morais que podem existir em qualquer contexto humano. A verdadeira solução para evitar tais tragédias não reside na mudança de um sistema econômico para outro, uma vez que há inúmeros cenários com maior ou menor intervenção estatal no mercado e na vida das pessoas, mas no fortalecimento de valores éticos e na implementação de políticas e práticas que garantam a segurança e o bem-estar como prioridades efetivas. Somente por meio do aprimoramento moral do indivíduo pautado pela liberdade e valorização da vida humana acima de outros interesses, será possível mitigar a influência da ganância em qualquer contexto econômico ou político.


sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

O capitalismo é impessoal, não desalmado



O capitalismo é impessoal, não desalmado

Donald J. Boudreaux*

 

Há muito para gostar no recente ensaio de Richard Jordan em Law & Liberty, "Romancing Creative Destruction". Mas também está infectado por uma falha notável, a saber, a alegação de Jordan, completa com ênfase adicional, de que "o capitalismo é desalmado".

Lido estritamente, essa afirmação é vazia de significado útil. O capitalismo não é uma criatura sensível; ele não tem consciência nem consciência. Capitalismo é o nome que damos a uma maneira particular de interações humanas. Portanto, não é mais útil observar que "o capitalismo é desalmado" do que é observar que "o tráfego de automóveis é desalmado".

Mas o desalmado' do capitalismo é afirmado com muita frequência, por pessoas de todas as orientações ideológicas, e essa afirmação obviamente transmite algum significado substantivo para aqueles que a encontram.

Qual poderia ser esse significado? Acho que sei. A alegação de que o capitalismo é desalmado reflete uma confusão entre "impessoal" e "sem alma". O capitalismo de fato apresenta inúmeras trocas impessoais, mas essa realidade não significa que o capitalismo seja desalmado.

A afetuosidade das interações pessoais

Entre pessoas que se conhecem intimamente, a assistência é oferecida por um senso de amor e verdadeiro companheirismo. As interações entre membros da família podem ser descritas como 'trocas', e as motivações para essas interações pessoais são talvez mais bem compreendidas pelos analistas como sendo enraizadas em disposições psicológicas 'escolhidas' pela seleção natural, porque essas disposições promovem a sobrevivência de cada uma das partes que interagem. No entanto, a experiência consciente de interagir com entes queridos e amigos não envolve um senso de ponderação de custos e benefícios - nenhum sentido de "troca" egoísta. Ajudamos nossos pais e filhos porque os amamos. Recebemos ajuda de nossos amigos por causa de seus sentimentos por nós. E tanto o dar quanto o receber dessa ajuda despertam emoções que nós humanos compreensivelmente descrevemos como "afetuosas".

A doçura de experimentar esse amor e afeto não pode ser adequadamente expressa em palavras retiradas de livros didáticos de economia ou biologia. Valorizamos o toque pessoal e nos regozijamos sabendo que nós, como pessoas de carne e osso, somos cuidados por outras pessoas específicas de carne e osso.

Em comunidades pequenas, cujos membros raramente interagem com indivíduos que não conhecem pessoalmente, todas as interações comerciais apresentam doses pesadas de conhecimento pessoal e emoção. O alfaiate Smith sabe que o comerciante Jones não vai enganá-lo porque Smith e Jones são velhos amigos. Enquanto cada um ganha economicamente ao negociar com o outro, cada um também ganha emocionalmente. Smith valoriza suas conversas na loja com Jones, que por sua vez aprecia a compra de Smith daquele pão extra - uma compra motivada, Jones está silenciosamente ciente, pelo conhecimento de Smith de que Jones está passando por um momento financeiro difícil.

Essas interações são pessoais. E são boas.

A ordem capitalista estendida do mercado

O comércio exclusivamente entre pessoas que se conhecem - mesmo quando totalmente não regulamentado pelo governo - não é, como tal, capitalismo. O capitalismo requer mais do que o governo se manter em grande parte não envolvido nos detalhes dos processos econômicos; o capitalismo também envolve (1) uma abertura à mudança econômica de tal forma que a inovação incessante seja encorajada e (2) um desejo de obter lucros atendendo a tantas pessoas - e a uma população diversificada de pessoas - quanto possível. No capitalismo, a divisão do trabalho - ou seja, a especialização - não é limitada pelas conexões pessoais dos indivíduos ou por limites fixados pela tradição, mas (como Adam Smith observou famosamente) "pela extensão do mercado".

Quanto maior o número de pessoas que interagem economicamente umas com as outras, maior é a capacidade dos indivíduos como produtores de se especializarem. Essa especialização aumentada, por sua vez, aumenta a produção por pessoa. Mas a mesma condição que torna possível essa especialização aumentada também torna impossível para qualquer indivíduo nessa economia conhecer pessoalmente todos os outros indivíduos com quem ele interage economicamente. Porque na economia global de hoje, as pessoas com quem interagimos economicamente chegam literalmente aos bilhões, a porcentagem dessas pessoas com quem também interagimos pessoalmente é quase zero.

Portanto, é verdade que quase todos os motivos que impulsionam e orientam bilhões de ações humanas que diariamente possibilitam nossa prosperidade moderna são exclusivamente 'econômicos', em vez de calorosos e pessoais. Quem quer que tenha saído da cama uma manhã há algumas semanas para dirigir da fazenda ao matadouro o porco que compartilhei no dia de Natal com familiares e amigos não me conhece, e eu não o conheço. Essa pessoa certamente contribuiu para o meu ótimo jantar de Natal, mas a motivação não foi amor ou bondade para com o próximo. E nenhuma parte da compra do presunto que comi foi motivada pelo afeto por esse motorista - ou, de fato, por qualquer outra pessoa envolvida no fornecimento desse presunto. Do início ao fim, a motivação e a informação vieram na forma de preços, salários, lucros e perdas registrados em termos de dinheiro. Todas essas trocas foram puramente 'econômicas'. A principal motivação em todo o processo é o ganho material, e todo o processo é guiado por cálculos racionais e monetários. Quase nenhum papel foi desempenhado por sentimentos pessoais e calorosos.

Tudo verdade. No entanto, descrever o capitalismo - ou, pelo menos, a sociedade capitalista - como sem alma é enganador.

Primeiramente, o capitalismo não nos impede de exercer e experimentar o companheirismo. Nós, habitantes da economia global do século XXI, temos tantas oportunidades de nos conectar pessoalmente com outros seres humanos quanto tiveram nossos ancestrais no Pleistoceno e aqueles nos pitorescos vilarejos da Nova Inglaterra do século XVIII. E, é claro, muitos de nós o fazem. Amamos nossos pais, irmãos, filhos e netos. Somos membros de igrejas. Cuidamos dos nossos vizinhos. Confortamos nossos amigos quando estão mal e somos confortados por eles quando a sorte se inverte. Se alguns de nós hoje escolhem viver vidas mais isoladas e solitárias - uma opção, admitidamente, facilitada pela riqueza capitalista - isso não é culpa do capitalismo. Se culpa deve ser atribuída, é aos indivíduos que escolhem essa opção.

No entanto, mais uma vez, a maioria de nós não escolhe viver como átomos isolados. Suspeito que o morador típico hoje de Manhattan, Miami ou Manchester tem tantas conexões pessoais e afetuosas com outros indivíduos de carne e osso quanto tinha o morador típico, 500 anos atrás, de qualquer vila medieval.

Mas a acusação de que o capitalismo é "sem alma" é falha de uma segunda maneira e até mais profunda. O que o habitante da modernidade tem e seu ancestral medieval não tinha são conexões muito reais também com inúmeros outros seres humanos. No sistema de cooperação social que se estende pelo globo hoje em dia, bilhões de indivíduos todos os dias são incitados e orientados a trabalhar para o benefício mútuo. Ainda temos as conexões pessoais das quais tiramos calor humano. Mas também temos conexões de mercado extensas com incontáveis estranhos que permitem a vastas porções da humanidade se ajudarem mutuamente como se cada um de nós amasse e fosse amado por bilhões de estranhos de origens e crenças diversas.

Motivados, na verdade, não pelo amor, mas pelo interesse próprio - e orientados não pelo conhecimento pessoal, mas por sinais de mercado impessoais - os mercados capitalistas são realmente impessoais. E eu admito que eles parecem frios e sem alma quando comparados às conexões face a face que temos com entes queridos, vizinhos e comerciantes locais em cidades pequenas. Mas certamente, quando comparados à pobreza mortal que experimentaríamos se tivéssemos conexões econômicas apenas com pessoas que conhecemos pelo rosto e nome, os mercados capitalistas devem ser aplaudidos por sua humanidade. Descrever como "sem alma" um sistema que encoraja e permite que inúmeros estranhos cooperem pacífica e produtivamente para o benefício mútuo certamente transmite uma impressão totalmente falsa.

O capitalismo é impessoal. Não é desalmado.

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 *Donald J. Boudreaux is a Associate Senior Research Fellow with the American Institute for Economic Research and affiliated with the F.A. Hayek Program for Advanced Study in Philosophy, Politics, and Economics at the Mercatus Center at George Mason University; a Mercatus Center Board Member; and a professor of economics and former economics-department chair at George Mason University. He is the author of the books The Essential Hayek, Globalization, Hypocrites and Half-Wits, and his articles appear in such publications as the Wall Street Journal, New York Times, US News & World Report as well as numerous scholarly journals. He writes a blog called Cafe Hayek and a regular column on economics for the Pittsburgh Tribune-Review. Boudreaux earned a PhD in economics from Auburn University and a law degree from the University of Virginia.

  

Fonte: https://www.aier.org/article/capitalism-is-impersonal-not-soulless/

 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

O falso cognato e a arrogância dos “ungidos”

 

O falso cognato e a arrogância dos “ungidos”

 

Marco Milani

 

Ao estudar um novo idioma, o aprendiz enfrenta situações que podem gerar confusões semânticas, principalmente quando algumas palavras estrangeiras são escritas de maneira muito semelhante àquelas existentes em sua língua nativa, porém possuem significados diferentes e até antagônicos. Tais são os chamados falsos cognatos.

Em inglês, dentre muitos exemplos, tem-se que: parents significa pais (e não “parentes”), fabric significa tecido (e não “fábrica”) e lecture significa palestra (e não “leitura”).

Um falso cognato não muito citado é condescendent. Em português, “condescendente” é utilizado para alguém tolerante, flexível e complacente. Em inglês, todavia, condescendent aplica-se para alguém que age com arrogância, presunção e prepotência.

E o que falsos cognatos têm a ver com os ungidos, conforme relacionado no título deste texto?

O economista Thomas Sowell, em seu instigante livro The vision of the anointed: self-congratulation as a basis for social policy (lançado no Brasil pela LVM Editora com o título “Os Ungidos: A fantasia das políticas sociais dos progressistas”) caracteriza aqueles que podemos denominar de ungidos (anointed), os quais possuem a presunção de superioridade moral e apresentam uma peculiar visão da realidade, calcada em utopias coletivistas desconectadas dos fatos, mas que direcionam a formulação de várias políticas públicas equivocadas. A mentalidade dos ungidos centra-se na suposição de que as ações prescritas por eles (seres virtuosos e sábios) para a sociedade deveriam ser implementadas como único caminho para se promover a justiça e igualdade entre todos. As vozes dissonantes, que ousam discordar dos ungidos, são apontadas como retrógradas, antidemocráticas e passíveis de serem caladas em nome de um suposto bem comum.

Sowell demonstra com dados estatísticos como fracassadas políticas sociais “progressistas” foram elaboradas nos EUA desde a década de 1960 sob a influência arrogante (condescendent) de uma autoproclamada elite moral, repleta de boas intenções, mas que paradoxalmente agravou os problemas que se desejavam resolver, gerando crises na área educacional, segurança pública e até na estrutura familiar.

Em síntese, os ungidos se acham condescendentes e plenos de virtudes, mas não passam de limitados e iludidos condescendents.